Sob o calor escaldante do sertão goiano, corações errantes vão ao seu encontro. Motoristas enfrentam a estrada de terreno ao som de Nelson Ned, que torna a letra de “Tudo Passará” em síntese dos amores perdidos. Ao término do trajectória, a violência desafia a cantiga e ali permanece: dois homens disputam a mesma mulher.
Quase porquê fantasma, a Luiza de Tuanny Araújo deixa a tela poucos segundos depois de surgir. Ela se recusa a estar com eles e a sequidão do solo representa a dupla patética vivida por Ângelo Antônio e Babu Santana. No universo de “Oeste Outra Vez”, essa gente vive assim. As palavras são mera formalidade e tudo se resolve na base da revólver.
É na desconstrução do faroeste que o diretor Erico Rassi encontra motivação para o seu segundo longa, vencedor do prêmio supremo no último Festival de Gramado. Se o gênero já abrigou foras da lei bons de gatilho e caubóis movidos por pura coragem, cá a virilidade de galãs porquê Clint Eastwood está com os dias contados.
“Ainda que não esteja fisicamente presente, a Luiza inverte uma narrativa que define as mulheres porquê coadjuvantes. São os homens que orbitam essa escassez feminina. A mudança traz um vazio que flerta com os espectadores e as jornadas individuais dessas figuras”, afirma Araújo. A atriz acredita nesse desconforto porquê gavinha importante entre o público e a obra, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (27).
Quando Totó, interpretado por Antônio, pede ajuda a um lendário pistoleiro para trucidar Durval, papel de Santana, tem início um jogo tragicômico de gato e rato. Tiros fracassados voam pelas planícies secas e matadores de aluguel correm por todos os lados enquanto tentam encapotar sua vulnerabilidade.
Rassi coloca o raconto “Duelo”, de Guimarães Rosa, e o cinema de John Ford entre as inspirações. Ele vê a transformação dos protagonistas encarnados por John Wayne porquê prenúncio da contemporaneidade que define os pobres coitados de “Oeste”.
O cineasta retorna à mitologia de seu trabalho anterior, “Comeback”, em que dirige Nelson Xavier porquê um matador jubilado que tenta retomar as glórias do pretérito.
“Eu queria falar sobre esses homens brutos, violentos, mas que ao mesmo tempo são tão frágeis. E precisava inserir essa história no cenário de um western. Logo viajei para diferentes cidades do interno de Goiás, onde fiquei um bom tempo imerso e entrevistei muita gente”, diz Rassi.
As pesquisas extensas fazem secção de seu modus operandi e o projeto exigiu três longos anos antes das filmagens, que aconteceram em 2019. Já durante o set, a intersecção do elenco aos espaços fortaleceu os personagens pelas experiências reais.
Santana relembra os bastidores de uma das cenas que envolve uma partida de sinuca. No projeto, o jogo simboliza as batalhas que persistem no imaginário masculino, e a dificuldade em convencionar as caçapas ri dessa teimosia.
“Tinha um rapaz lá da sinuca que ficava perplexo com a presença das mulheres da equipe no bar. ‘Nossa, mulheres no bar, jogando sinuca, bebendo, se beijando’, ele parecia pensar. Comecei a estudar o olhar e o corpo dele. Fiquei impressionado com o quanto ele conseguia manifestar sem falar”, afirma ele.
Embora o silêncio amplifique a imensidão das chapadas e alimente a solidão que paira sobre os botequins, os diálogos têm o mesmo peso sobre o desenvolvimento desse mundo.
Da escolha cautelosa de cada termo às falsas mesuras que mediam as negociações de um assassínio, o longa tem a preocupação com seus códigos verbais porquê prioridade. Surge um descompasso entre o interno primitivo e o falar melindroso que se inscreve nos sotaques e expressões populares.
“Foi um repto encontrar a melhor forma de preencher a rigidez desse texto. Mas portanto nós percebemos que, se os diálogos são simples na superfície, eles revelam a profundidade desses homens. Mostram aquilo que eles têm dificuldade em orar”, diz o ator Daniel Porpino.
Ele interpreta o pistoleiro Antonio, que secção com o colega Domingos, papel de Adanilo, para matar Totó. A dupla é educada e tem o hábito de apresentar métodos e credenciais aos seus contratantes. Nem por isso os colegas trocam confidências ou conseguem ser sinceros uns com os outros.
Porpino cita a cena em que os dois se preparam para repousar em um quarto de hotel. Domingo percebe que uma antiga paixão atormenta o companheiro e tenta ajudá-lo. Eles conversam em ciclos, dando voltas e voltas sem chegar a lugar nenhum, proibidos de falar sobre si.
“Nosso ‘Oeste’ é o grito de um varão sufocado pelas mãos dele próprio. Vejo que grande secção dos nossos problemas são oriundos dessa masculinidade tóxica. É poético ver essa discussão em um faroeste abrasileirado, com nossa forma de mourejar com a vida”, afirma Adanilo.
Sua perspectiva não difere da de Rodger Rogério, ator do ancião de 81 anos que provoca o imbróglio ao errar um disparo. Ele resgata o cangaço ao falar da tradição do faroeste no Brasil e menciona “Bacurau” porquê outro projeto recente a desafiar linguagens do gênero.
Rogério vê na subversão do mito masculino, propagado entre incontáveis gerações, a mesma valor de se preservar a origem do cinema vernáculo.
Quem faz coro às suas palavras é Antônio Pitanga, que participa de “Oeste” porquê um senhor importunado pela partida da esposa. Ele diz ter no filme seu primeiro papel em um faroeste verdadeiramente brasílio.
“O filme mostra um oeste que não existe em nenhum outro lugar. Ele fala sobre um varão milenar. Esse varão que frequenta o Maracanã e o Morumbi. Ele denuncia o varão que abandona a mulher em lar e vai tomar com os amigos. Esse é o tipo de cinema que precisa ir às ruas e chegar a todos os lugares.”
