“Foi um brasílio destemido”, dizia a dedicatória fixada na grinalda de flores. A chuva que caía em São Paulo aumentava o clima de consternação que pairava sobre o velório. Finalmente, ele morreu de forma precoce sem ver realizados alguns de seus principais projetos para o Brasil.
No entanto, enquanto a marcha funéreo ressoava naquele início de noite, o morto abriu os olhos e se levantou do caixão. Era Lima Barreto desafiando a morte e o ostracismo.
Em edital no Sesc Pinheiros, a peça “A Solidão do Mal-parecido” começa pelo termo da vida do repórter carioca, prólogo que resume à um dos motes da obra.
“Lima sempre foi pintado uma vez que o ébrio, o solteirão, o ranzinza, ou seja, uma vez que alguém que é o avesso da vida. Colocar esse varão para se levantar do caixão é uma forma de ultrapassar a teoria cristã de morte e festejar a vida dele no palco”, diz Sidney Santiago Kuanza, que interpreta o repórter e assina a direção ao lado da atriz e dramaturga Gabi Costa.
Inspirado no história “Apologética do Mal-parecido”, o espetáculo reconta a trajetória do romancista por meio de cenas que não estabelecem relação linear umas com as outras. Essa escolha narrativa dá à peça um caráter pulsante e dinâmico.
A troca de figurino acontece sobre o palco, a diretora e o contrarregra entram em cena e interagem com o ator e novos elementos cênicos vão se revelando ao público. É uma vez que se a peça tivesse a mesma urgência com a qual Lima Barreto escrevia seus livros.
Morto aos 41 anos, ele foi um crítico mordaz da Primeira República. Por meio de seu projeto literário, denunciou os jogos de poder da escol e jogou luz sobre o preconceito contra a população negra, grupo que não viu cumpridas as promessas feitas na cessação. De certa forma, Lima foi o mensageiro de um país que o Brasil não queria ver.
Não à toa, na primeira cena depois do prólogo, Sidney surge no palco caracterizado uma vez que Exu, o orixá mensageiro que conecta os deuses aos humanos. Ele é o guardião da ordem, mas também promotor da desordem.
“Lima Barreto conseguiu de forma refulgente fazer uma síntese do que era o Brasil de seu tempo e o que seria o Brasil do século 21”, afirma o ator. Uma dessas sínteses pode ser lida em “O Triste Termo de Policarpo Quaresma”, possivelmente seu livro mais comemorado.
O personagem-título é um sujeito ufanista que vê suas idealizações para o Brasil ruírem diante do trote coletivo. É uma vez que se o livro condensasse o desencanto do romancista com os rumos que o regime republicano havia tomado. Uma de suas críticas mais recorrentes era ao patrimonialismo brasílio, isto é, a tendência das autoridades de usarem o muito público para satisfazer anseios privados.
Mais de um século posteriormente a morte do repórter, críticas uma vez que essas continuam atuais. Para patentear isso, o texto da peça faz referência a fatos recentes, uma vez que ao libido do ex-presidente Bolsonaro de indicar um dos filhos para o Supremo Tribunal Federalista.
Continuam atuais também as avaliações do romancista sobre as dinâmicas raciais do Brasil, visões que permeiam o espetáculo. Exemplo disso acontece quando o ator diz que a liberdade é um troféu difícil de manter para pessoas negras.
O carioca viveu no prelúdios do século 20, período em que o racismo havia adquirido pretensões científicas. As autoridades médicas e políticas de portanto defendiam que a desigualdade social era revérbero de diferenças físicas e intelectuais entre as pessoas.
Sob essa lógica, as populações negras viviam em vulnerabilidade econômica por falta de perceptibilidade e por serem propensas à criminalidade, e não por influência de circunstâncias históricas, uma vez que a escravidão.
Lima denunciou por diversas vezes esses pressupostos. No livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de 1909, o personagem que dá título à obra é tachado de “mulatinho” por um solicitador e recluso logo depois criminado injustamente de roubo, mesmo dizendo ser um estudante. “Não há patife, tratante, malandro por aí que não se diga estudante”, afirma o policial.
“É um livro sobre a experiência de um jovem que chega à capital da República e se percebe preto por pretexto da truculência. Ainda hoje, muitas pessoas entendem sua negritude através da violência, e não pela identificação”, diz Sidney.
Segundo ele, o espetáculo é uma forma de humanizar uma figura que foi desumanizada pelo racismo. “E a gente mostra essa humanidade por meio de imagens que se contrapõem aos registros oficiais sobre ele.”
Em cena, vemos um Lima Barreto amaneirado e referto de vigor, características que pouco são usadas para descrever o literato. Não por contingência, as duas fotografias mais conhecidas dele o mostram cabisbaixo e aquebrantado. Ambos os registros fazem segmento de sua ficha no velho Hospital Pátrio dos Alienados, onde ele foi internado para tratar o alcoolismo.
“São imagens de controle e de cárcere que aprisionam um varão genial dizendo que ele foi um louco. É um processo que raramente dá espaço para que seus feitos sejam louvados,” diz Sidney, que estuda o responsável há 14 anos e procura patrocínio desde 2021 para montar a peça.
“A Solidão do Mal-parecido” faz segmento de um projeto em que ele discute na dramaturgia a masculinidade negra. A teoria, diz, é colocar em evidência a imposto política e artística de homens negros para o Brasil.
Gabi Costa, a diretora, diz que esse é de roupa um dos objetos da produção. “É resgatar novamente a figura de Lima. Uma vez que várias figuras históricas importantes para a gente, ele sumiu do nosso radar por um período.”
Depois que morreu, em 1922, o repórter caiu no ostracismo e só saiu de lá três décadas depois, com a publicação de “A Vida de Lima Barreto”, biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa.
Outro objetivo da peça é democratizar o teatro e aproximá-lo do público. Essa é uma das razões pelas quais ela começa com a encenação de um velório público. “A rua é um lugar de trânsito das pessoas, onde não é preciso remunerar para estar”, diz Sidney. Lembra a estética defendida por Lima, detrator de academicismos e floreios literários.