Logo na primeira cena de “Retrato de Um Perceptível Oriente”, filme inspirado no livro de Milton Hatoum, Emir entra esbaforido em mansão. “Eu quero ir embora do Líbano! Não quero morrer!”, implora à sua mana, Emilie, para convencê-la a deixar o país ameaçado pela guerra, rumo ao Brasil.
A história que se passa em 1949 ficou tragicamente atual. No final de setembro, poucos dias antes da exibição do filme de Marcelo Gomes no Festival do Rio, Israel bombardeou Beirute em mais uma manobra para pressionar o Hezbollah.
“O que aconteceu em 1948, com os palestinos saindo de sua terreno e os libaneses fugindo por desculpa da guerra, é o que está acontecendo exatamente agora. Parece que não aprendemos zero com a história”, diz Gomes.
Ainda que não pudesse prever a explosão do conflito, o diretor queria descrever uma história que falasse sobre imigração e intolerância religiosa. Sentado em um sofá no segundo caminhar do cinema Odeon, no Rio de Janeiro, Gomes diz que o conflito entre os mundos de personagens totalmente diferentes é um dos grandes protagonistas em seus filmes.
Por fim, ele dirigiu “Cinema, Aspirinas e Urubus”, que se tornou um clássico do cinema brasiliano nos anos 2000 ao narrar o encontro entre um boche fugido da segunda guerra e um sertanejo, e “Paloma”, proclamado o melhor filme pelo Festival do Rio em 2022, sobre uma mulher trans que sonha em matrimoniar na igreja.
“Entender um ponto de vista dissemelhante do seu é um contraveneno contra o fanatismo”, diz Gomes. Mas quando pediu a Hatoum permissão para ajustar “Relato de um Perceptível Oriente”, o diretor estava também interessado no duelo de descrever uma história que, originalmente, é contada por meio do fluxo de consciência dos personagens.
O filme se passa quase que por inteiro em um embarcação que navega pelo rio Amazonas rumo à Manaus, no qual estão os dois irmãos católicos e Omar, um tratante muçulmano por quem Emilie se apaixona. O romance dos dois desperta a ira de Emir, ciumento e controlador em relação à mana. A indígena Anastácia, vivida por Rosa Peixoto, foi uma personagem acrescentada por Gomes à trama.
“Viajamos com Milton [Hatoum] e vi pelo seu olhar Manaus e Belém, que nos anos 1940 eram uma Babel de línguas, com gente de todo lugar do mundo”, conta o diretor. “O artista é um varão de seu tempo, e eu queria colocar no filme a questão dos povos indígenas, que com toda a sua sabedoria, podem ensinar sobre conviver em geral, no mesmo território.”
Gravado em preto e branco, o filme remete a um álbum de fotografias antigas que capturaram os sentimentos de perplexidade, angústia e excitação dos estrangeiros, que deixaram uma paisagem árida e montanhosa para se embrenharem em um caminho interminável de chuva.
A floresta amazônica aparece fértil, enxurro de possibilidades para o porvir, mas também densa e assustadora. O cenário monocromático impede, propositalmente, a exotificação da região.
Assim uma vez que sua personagem, Emilie, foi a primeira vez que a atriz libanesa Wafa’a Céline Halawi encarou a Amazônia. “Fiquei impressionada com a força do rio, selvagem uma vez que um mar, mas sua chuva é gula. Há uma mistura de selvageria e suavidade”, diz ela.
O impacto foi conquistado pelas lentes de Gomes, mais preocupado com os olhares dos atores do que com suas palavras. Quase todos os diálogos do filme são em mouro, o que exigiu ensaios em inglês antes das gravações finais.
Halawi, Charbel Kamel e Zakaria Kaakour, que interpretam Omar e Emir, foram escolhidos para os papéis depois testes no Líbano, antes da pandemia. Na era, o país enfrentava uma crise econômica, lembra Halawi.
Quando as gravações começaram, em 2020, uma enorme explosão aconteceu em Beirute, devido a um material altamente explosivo armazenado no porto. E, na estreia do longa, o Líbano está novamente em guerra.
“Todos os temas do filme ainda estão presentes no Libano hoje. Pessoas fugindo por desculpa da guerra, tentando encontrar mansão, as diferentes ondas de imigração, as diferenças religiosas”, afirmou a atriz. Durante a entrevista, ela disse estar preocupada com seu retorno ao país.
“O que está acontecendo no Oriente Médio e em Gaza já aconteceu antes na história: pessoas estão sendo desumanizadas”, diz Halawi. Ela espera que o filme, um retrato vetusto de uma situação atual, deixe as pessoas inconformadas sobre o que está acontecendo no Líbano.