Como 'tradwives' personificam valores da ultradireita 11/03/2025 ilustrada

Como ‘tradwives’ personificam valores da ultradireita – 11/03/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Com um bebê loiro em um dos braços, a influenciadora Hannah Neeleman —também branca, loira e de olhos azuis— quebra ovos em uma batedeira Kitchen Aid amarela. Segue-se uma receita de barrinhas de arroz, feita em panelinhas do mesmo tom de amarelo da batedeira de R$ 2.700 e sob os olhos atentos e mãozinhas ágeis de mais três crianças. O vídeo publicado no Instagram já ultrapassa 280 milénio curtidas.

A influenciadora de 34 anos é bailarina de formação, com bacharelado em dança pela faculdade Julliard, em Novidade York, uma das mais importantes do mundo. No último ano de graduação ela já estava casada e prenha do marido, o herdeiro Daniel Neeleman, com quem hoje tem oito filhos.

O parelha vive numa rancho em Utah, estado americano famoso pela possante presença da comunidade mórmon, da qual Hannah e Daniel fazem segmento. Os filhos do parelha recebem instrução domiciliar e são presença frequente, e de tom angelical, nos vídeos que a dona de lar compartilha na rede social para os seus mais de 10 milhões de seguidores sob o vulgo @ballerinafarm.

No cenário idílico da rancho —e longe do suor e dos baldes plásticos usados em faxinadas mundanas— ela prepara do zero provisões porquê mostarda, manteiga, iogurte e pão, além de cuidar do manada e recolher ovos da granja.

Segundo Eviane Leidig, autora de “The Women of the Far Right: Social Media Influencers and Online Radicalization” (As mulheres da extrema direita: influenciadores das redes sociais e radicalização online, em português), leste é o tipo de tendência que “posiciona o trabalho doméstico porquê um espaço de felicidade e tranquilidade”.

E Neeleman não está sozinha nesse projeto. Outras influenciadoras carregadas de seguidores usam seus perfis no Instagram e TikTok para promover —com uma boa ração de glamour— a vida porquê donas de lar. Elas são chamadas de “tradwives”, ou “esposas tradicionais”. Segundo pesquisadores, por mais que as imagens produzidas por essas mulheres pareçam apolíticas, são formas sutis de promover valores porquê a maternidade e a teoria de que esposas devem se ocupar de tarefas domésticas.

A ex-modelo Nara Smith, que acumula ao menos 4,5 milhões de seguidores no Instagram, ganhou espaço com seus vídeos em que cozinha vestindo roupas de grife, por exemplo. Em um deles, usando um vestido branco decotado, com unhas feitas à sublimidade e cabelo irretocável, ela faz um sanduíche que envolve a confecção do pão e do chimichurri, além da fritura de um bife cimeira.

“Meu marido vai viajar com os amigos e eu obviamente não poderia deixá-lo ir com miséria”, diz ela, aos sussurros, na narração do vídeo. Assim porquê Neeleman, ela também é mórmon, grupo religioso associado não só a uma visão conservadora dos papéis de gênero, mas a todo um estilo de vida próximo ao dos pioneiros americanos, contornado de fé e trabalho.

A tendência das “tradwives” já cruzou o Atlântico. Perfis porquê de Victoria Maria Maciel, com 55 milénio seguidores no Instagram, abrasileiram a teoria trocando a religião mórmon pelo catolicismo e incluindo brigadeiros em postagens que dizem “mulheres, sejam doces”.

Por cá, a abordagem é um pouco mais pé no soalho e inclui uma ocasional passada de tecido no soalho da lar ou um ciclo de roupas na máquina de lavar.

O estilo de vida dessas influenciadoras, principalmente Neeleman, chamou a atenção de veículos porquê o New York Times e a revista Evie, publicação feminina conservadora.

Enquanto o jornal nova-iorquino explora as raízes do sucesso econômico da influenciadora —que, junto do marido, administra uma rancho com mais de US$ 400 milénio investidos—, a revista vende porquê um sonho a vida de dona de lar.

Em um vídeo para promover a cobertura da Evie que protagoniza, Neeleman corre detrás de gansos usando um vestido românico lilás, longo e em camadas, além de botas de cowboy. Ela personifica, segundo o título da reportagem, o “novo sonho americano”.

Para Leidig, é um mito nostálgico. “São pessoas que dizem que a vida era mais simples antigamente, mas só era assim se você tivesse os meios econômicos de perceber isso”, diz.

Devin Proctor, professor de antropologia na Universidade Elon e estudioso de comunidades digitais de ultradireita, faz repercussão à leitura. “Elas ignoram que esse pretérito foi opressor para pessoas que não eram brancas. A teoria que os Estados Unidos dos anos 1950 eram perfeitos, idílicos e pacíficos é um mito que só vale para segmento da classe média subida branca.”

A crença é relacionada também ao mote patriótico evocado pelo slogan “make America great again”, do presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Essas influenciadoras, porém, vendem de forma indireta o conservadorismo do movimento, sem precisar mencionar o nome de Trump.

Segundo Leidig, a imagem reproduzida pelas influenciadoras gira em torno de papéis “heteronormativos estritos” vistos em casamentos entre homens e mulheres, em que ela fica responsável pela lar enquanto ele trabalha fora. “Há também um libido por filhos biológicos.”

Há, para Proctor, misoginia e racismo implícitos nessa tendência, que partem da valorização de um pretérito perfeito —que era, na veras, recheado de desigualdade e vexame.

Os pesquisadores explicam que a maior segmento das influenciadoras sob o guarda-chuva de esposas tradicionais não são —de forma explícita— supremacistas brancas. Mas são movimentos que se sobrepõem e chegam a ter representantes comuns.

É o caso da ex-blogueira Ayla Stewart, vulgo “Wife with a Purpose”, ou esposa com propósito. Em 2017, ela lançou na internet o “repto do bebê branco”, em que convocava seus seguidores brancos a procriar. Em uma selfie de 2019, ela usou as hashtags “Maga”, em menção ao slogan de Trump, além de “restoration” (restauração, em português) e “nacionalism” (nacionalismo, em português). Em seu site, ela inclui imagens com a hashtag “whiteculture”, ou cultura branca.

Leidig afirma que as origens da comunidade “tradwife” têm conexões diretas com grupos supremacistas brancos e redes racistas. “São comunidades online que se sobrepõem porque tanto supremacistas quanto as “tradwives” valorizam ideias em geral sobre hierarquias de gênero.” A autora diz que a tendência se originou por volta de 2015 e se deu principalmente em fóruns e chats online de grupos redpill —movimento conspiracionista e masculinista da ultradireita— e supremacistas.

Existem ainda influenciadoras que são mais vocais sobre política, caso de Estee Williams. Com cabelos loiros arrumados em penteados à la anos 1950 combinados com aventais de cozinha, a influencer fez campanha para Trump em suas redes, onde também advoga contra o monstro. Mas ela se distancia do oração racista quando diz que existem “‘tradwives’ de todas as cores ao volta do mundo”.

Williams é uma das várias que criticam francamente o feminismo. Para ela, o feminismo omissão em não reconhecer que, no termo, ela e outras mulheres que escolhem ser donas de lar estão tomando decisões por conta própria.

Para Leidig, é um refluxo de certa frustração com a figura da “girlboss” —mulheres que equilibravam na mesma bandeja uma vida profissional ambiciosa, um himeneu bem-sucedido e a maternidade.

A autora diz que a linguagem sutil adotada pelas “tradwives” para promover esse estilo de vida é um movimento estratégico. Mas os chamados “dog whistles”, mensagens cifradas de fardo política direcionadas a pessoas com os mesmos ideais, ainda aparecem.

É o caso dos acenos a movimentos antivacina e à indústria de bem-estar. A fundadora da revista conservadora Evie advoga pelo leite não pasteurizado em seu Instagram, numa releitura da campanha “got milk?”, criada nos anos 1990 para aumentar o consumo de leite nos EUA.

O leite não pasteurizado é uma das bandeiras de Robert Kennedy Jr., secretário de saúde do governo Trump, que também se posiciona contra a obrigatoriedade de vacinação e a presença de flúor na chuva.

“Narrativas de maternalismo se tornam armas na comunidade “tradwife” porquê se elas estivessem protegendo seus filhos da indústria de provisões ou da indústria farmacêutica”, diz Leidig. É um clima de suspicácia em que os consensos científicos correm risco de ser esmagados.

Para Leidig, são figuras perigosas, não só para mulheres que podem se inspirar a entrar em relações de submissão, mas para homens que consomem esse teor –e, assim, acham que todas devem ser belas, recatadas e do lar.

Folha

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