Como Vão Saber Que é Uma Menina? 11/03/2024

Como vão saber que é uma menina? – 11/03/2024 – Joanna Moura

Celebridades Cultura

“Você não furou a ouvido dela?”

Me perguntou um companheiro, ao ver a minha filha, logo com um ano de idade, pela primeira vez.

Eu já havia ouvido a tal pergunta antes. Aliás, já haviam nos feito o mesmo questionamento tantas vezes que elaboramos uma resposta padrão diplomática o suficiente para não deixar ninguém ofendido, mas taxativa o suficiente para —geralmente— fechar o tópico. Desandei logo a enunciá-la com um sorriso também diplomático gravado no rosto:

“A gente conversou sobre essa possibilidade e, por mais que eu ache lindo em mim, decidimos esperar para que ela própria tome essa decisão quando estiver maior.”

Eu estava prestes a retrair outro tópico, quando meu interlocutor prosseguiu:

“E você não costuma colocar nenhum lacinho nem zero na cabeça dela?”

“Não… Ela não gosta de zero prendendo o cabelo.”

Ele não se intimidou e prosseguiu, finalmente concluindo seu raciocínio:

“Mas porquê vão saber que é uma rapariga?”

Confesso que a pergunta me pegou de surpresa. Nunca tinha parado para pensar nisso.

Olhei para Stella, brincando em cima da mesa entre nós dois, seus cabelinhos de bebê ainda curtos, seu corpo trajando unicamente uma fralda de tecido nem rosa, nem azul. Podia ser unicamente um retrato do momento, um registro de um daqueles dias de verão em que roupas não são bem-vindas. Mas era o revérbero leal da maior segmento de seus dias. Porquê muito indicado por meu companheiro, Stella não usa brincos nas orelhas nem laços no cabelo. Em seu pequeno armário, poucas são as pistas sobre seu gênero. O rosa está longe de ser a cor dominante, vestidos são raros.

Naquela fração de segundo em que a pergunta ficou sem resposta, refleti sobre tudo o que havia nos levado até ali. Finalmente, nenhuma escolha se dá ao contingência. Lembrei do dia em que recebemos a notícia de que Stella seria uma rapariga e eu chorei de alegria e preocupação em igual medida. Lembrei de porquê, à medida que ela se desenvolvia, percebemos que os vestidos atrapalhavam seus movimentos, prendendo sua perna ao gatinhar, impedindo-a de subir com destreza os degraus do brinquedo no parquinho enquanto os meninos trajando calças subiam sem dificuldade. Lembrei de porquê sempre que ela vestia uma roupa mais feminina, os elogios se acentuavam, mas também se adequavam ao gênero: “Que linda!”, “Que princesa!”, “Que mocinha!”, reforçando essa teoria preconcebida do que é feminilidade.

Concluído o flashback, respondi com uma novidade pergunta: “Por que sentimos tanta premência de notabilizar meninas e meninos ainda bebês?”

Ele sorriu nervosamente e, incapaz de me oferecer qualquer resposta, finalmente mudou de tópico. Eu, por outro lado, segui tentando responder ao meu próprio questionamento e cheguei à desfecho de que, numa sociedade machista, saber logo de rostro quem é quem é importante. Só assim, essa mesma sociedade conseguirá moldar esses mini seres humanos para que se encaixem naquilo que se espera deles. E para a mulher essa construção se dá também na sutileza do dia a dia, naquelas barreiras que a gente se acostumou a descobrir inofensivas. No laço que não pode trespassar do lugar, no vestido pleno de camadas que atrapalha o caminhar. E também no tipo de elogios que a feminilidade atrai, que reforçam uma influência desmedida da venustidade, da delicadeza, da perdão, da fragilidade.

Mas eu quero que minha filha seja poderoso e corajosa, que tenha sensibilidade e empatia sim, mas também voz própria e pensamento crítico. E que entenda que seu valor vai muito, muito, muito além de sua venustidade física.

Por essas e tantas outras, não me incomoda que um estranho na rua pense que minha filha é um menino. Minha prioridade não é sinalizar seu gênero, até porque, assim porquê o furo na ouvido, quem irá um dia resolver sobre isso será ela. O meu papel se resume a ajudar a edificar dentro dela uma autoconfiança unicamente provável por meio da plena e verdadeira liberdade de fazer tudo o que um menino é capaz de fazer. E se por isso a confundirem com um deles, não faz mal. Deixa que confundam.

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Folha

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