Um quina de candomblé, um solo de bateria e o “Prelúdio” das “Bachianas n. 3” de Heitor Villa-Lobos, com seus dramáticos arpejos de piano pontuados pelo contracanto tocado no registro grave da orquestra. Tudo isso está nos primeiros minutos da trilha de “Terreno em Transe”, o clássico do Cinema Novo de Glauber Rocha, de 1967.
A rápida sucessão de sonoridades continua com rajadas de tamborins e metralhadoras, jazz e trechos de óperas de Carlos Gomes e Giuseppe Verdi, compondo aquilo que os artistas Nuno Ramos e Eduardo Climachauska consideram ser “a mais impressionante margem sonora de todo o cinema brasílio”.
Em “O Esquina de Maldoror: Terreno em Transe em Transe”, que será apresentado na sexta-feira e no sábado, a dupla leva esse caos cuidadosamente arquitetado ao palco do Theatro Municipal. Todos os sons do filme serão recriados ao vivo: a música, os diálogos e até mesmo os efeitos sonoros. “Vai ter tudo”, explica Ramos. “Mas não vai ter zero disparado na caixa de som, e não vai ter imagem do filme”.
A teoria inicial era montar “Terreno em Transe” na forma de um concerto sinfônico. “No entanto, logo vimos que isso não era suficiente”, diz Climachauska. “Sentimos urgência de mexer no filme para acessar um pouco do mundo contemporâneo”.
Trabalhando em estúdio, os artistas distorceram digitalmente a margem sonora. Nesse processo, seguiram a trajetória do protagonista, o jornalista e poeta Paulo Martins. Figura contraditória, Paulo luta para libertar o povo do país imaginário Eldorado da violência que se estende desde a colonização; ao mesmo tempo, deixa evidente seu desprezo pelos pobres e participa de sua vexação.
Sua trajetória pode ser dividida em quatro momentos, apresentados no filme de modo não linear. Paulo começa uma vez que protegido de Porfírio Diaz, poderoso político de direita. Depois, trai Diaz e se associa ao populista de esquerda Felipe Vieira, esperando que levante lidere a revolução. Revoltado com a passividade de Vieira diante do golpe de Estado desferido por Diaz, Paulo vai sozinho à luta armada, em um gesto politicamente infecundo, porém congruente com seu lirismo exacerbado. Por termo, temos sua morte, à qual assistimos duas vezes em sequências delirantes no início e no final do filme.
Os artistas associaram cada momento a uma tessitura específica, indo das notas mais graves às mais agudas. As intervenções produzem sentidos diferentes a partir do filme. O embate entre Paulo e Diaz, escoltado por tiros sobrepostos ao coro “Vittoria! Sterminio!” do “Otelo” de Verdi, torna-se quase cômico com a música soando uma oitava supra. Já o comício carnavalesco de Vieira fica soturno com a “Fuga” das “Bachianas n. 9” de Villa-Lobos tocada em registro mais grave que o habitual.
O material foi traduzido em partituras pelos compositores Piero Schlochauer e Rodrigo Morte, e será tocado pela Orquestra Sinfônica Municipal, regida por Guga Petri. Os diálogos serão interpretados por Georgette Fadel e Marat Descartes, com as vozes oscilando do grave ao agudo conforme a cena.
Acrescentando outra classe à sonoridade já bastante complexa, teremos o Coro de Maldoror, encarnado pela solista Marcela Lucatelli e pelo Coro Lírico Municipal, regido por Érica Hindrikson. A densa trama polifônica do coro foi concebida a partir de improvisos vocais de Juçara Marçal, que foram manipulados digitalmente pelos artistas e transcritos por Schlochauer e Morte.
A obra foi construída de forma colaborativa, através de recriações sucessivas. “Tem um hiato entre a trilha do filme e o que a gente fez no estúdio, assim uma vez que tem um hiato entre isso e o que os compositores escreveram”, diz Ramos. “E também tem um hiato entre a partitura e o que os músicos fazem com ela, e por termo o grande hiato que é chegar no ouvido do público”.
A iluminação de Wagner Antônio e a cenografia de Laura Vinci reforçam o efeito desorientador do espetáculo. O cenário é constituído por quatro pêndulos que se movem em velocidades diferentes, espelhando as constantes subidas e descidas da música e das falas.
Ramos e Climachauska transformaram o filme de Glauber Rocha em um pouco novo, mas se mantiveram fiéis ao libido do cineasta de fabricar uma obra em crise, e não meramente sobre a crise. Trazendo a crise para dentro da obra, os artistas parecem sugerir que o campo democrático está hoje tão desnorteado quanto em seguida a guia imposta pela ditadura.
“É uma vez que se tudo estivesse deslizando, derrapando, desafinando”, diz Ramos. “Essa perda de referência está no meio deste trabalho”.