Não costuma ter unanimidade nas artes, mas Gena Rowlands talvez tenha sido uma exceção. A atriz, morta na última quarta (14), aos 94, teve uma curso muito uno, marcada pela irrupção no cinema independente e experimental do marido, John Cassavetes.
Mas foi uma atriz também com bastante prestígio para muito além do envolvente “indie”: era também reverenciada pelos que a acompanharam em suas obras mais comerciais —e mesmo entre os detratores do cinema cassavetiano.
O que de mais próximo a uma repudiação que ela conheceu talvez tenha sido o que disse a poderosa sátira Pauline Kael, em sua estudo sobre “Uma Mulher Sob Influência”, de 1974. “Sua performance é o suficiente para meia dúzia de ’tours de force’ e uma fileira de Oscars —leva-nos à exaustão. É concebível que ela seja uma ótima atriz, mas zero do que ela faz é memorável, porque ela faz demais.”
Kael não estava de todo errada, porque de vestimenta existe um elemento extenuante nas performances dos atores de Cassavetes em universal —e que, inclusive, fazia segmento de seu projeto estético. Mas a sátira errou mal-parecido em duas coisas: Rowlands não levou Oscar qualquer por aquele longa, embora tenha sido indicada pelo filme.
E, sobretudo, fez ali uma performance totalmente memorável. Tanto é que hoje o filme costuma ser assinalado porquê o vértice de Rowlands na tela, mas não exclusivamente. É também visto por muitos porquê a maior performance já apresentada por um ser humano no cinema.
Rodado na própria lar dos Cassavetes, no esquema de cooperação de amigos habitual, o longa traz a atriz porquê uma dona de lar mentalmente perturbada —aliás, personagens com os nervos em frangalhos eram a grande especialidade de Rowlands. Seu marido, muito consciente disso, criou uma notável galeria de personagens sob medida para seu talento. E que a imortalizariam.
Mas até chegar ali, Rowlands precisou trabalhar em projetos medíocres por muitos anos. Nasceu em 1930 e começou a curso no teatro, certamente com um estilo de atuar mais convencional. Sempre muito bela, não conseguia se distanciar de papéis que realçavam sua formosura, nos seus trabalhos iniciais dos anos 1950.
Seu primeiro destaque audiovisual foi na TV, na série “87th Precinct”, de 1961, em que interpretava uma jovem surda e muda. Na estação, já estava casada com Cassavetes, a quem havia publicado no meio teatral nova-iorquino. E só “aconteceu” de vestimenta porquê atriz depois que ele deixou de ser exclusivamente ator para se tornar também diretor.
Ainda que Roberto Rossellini e Ingrid Bergman (e, antes, Anna Magnani) e Jean-Luc Godard e Anna Karina tenham formado parcerias brilhantes, foi provavelmente Rowlands e Cassavetes a dupla marido-mulher mais frutífera da história do cinema.
Fizeram juntos dez filmes, com voos altos sobretudo depois “Faces”, de 1968, e “Assim Falou o Paixão”, de 1971. Aos poucos, os dois foram desenvolvendo um estilo novo, um pouco revolucionário, de explorar um ator diante de uma câmera.
O cinema moderno europeu (pós- Rossellini) foi muito marcado por uma certa emancipação do corpo do ator em relação à psicologia do personagem que ele interpreta. Já nos Estados Unidos, a modernidade foi moldada por outra manante performativa, a partir do chamado “método” fundamentado nos estudos de Constantin Stanislávski, em que a pessoa procura em suas próprias experiências o substrato para a sua atuação.
A Rowlands dos filmes de Cassavetes trazia um pouco de cada coisa. Sua performance não era fruto exclusivamente de uma intenção da atriz, de um comando de seu cérebro —e sobretudo de suas emoções— para o corpo expressar isso na tela. Não: sua corporalidade, livre das motivações da personagem, também dava o tom em suas performances.
Seus gestos excessivos, aparentemente mal domados, por vezes inexplicáveis, e seu modo de andejar e se portar transmitiam informações que iam muito além do que o teor das falas da personagem pretendia.
É simples que Rowlands sentia as dores e delícias de suas criações e transmitia isso a elas. Mas o olhar da atriz era tão segmento de suas performances porquê também era, por exemplo, o movimentar de seus magníficos cabelos. Por isso a figura dela era sempre tão hipnotizante; talvez tenha sido a atriz moderna por primazia. E de presença tão memorável, contrariamente ao que dizia Kael.
Quem há de esquecê-la em “Noite de Estreia”, de 1978, quando toma um dos porres mais homéricos de que já se teve notícias e, mesmo mal conseguindo caminhar, ainda assim vai ao palco para estrear um espetáculo com lar lotada?
Ou nas cenas de “Glória”, de 1980, que lhe rendeu a segunda indicação ao Oscar, quando ela caminha pelas ruas ao lado de um garoto, segurando a bolsa com uma mão e um revólver com a outra?
E será que alguma atriz foi capaz de provocar tanta tribulação quanto ela em “Amantes”, de 1984, quando sua personagem tomada de boas intenções e “fluxos de paixão” —os “love streams” do título original— nas veias, sai para comprar um bicho de estimação e volta literalmente com um zoológico inteiro?
São criaturas cinematográficas fortes demais para olvidar. Alguns papéis em filmes de outros cineastas também destacaram seu talento, porquê o televisivo “A História de Betty Ford”, de 1987, de David Greene, e “A Outra”, de 1988, de Woody Allen. Mas a força da Rowlands sob a batuta de Cassavetes nunca voltou a ser atingida.
O matrimónio durou até a morte dele, em 1989. Foram anos difíceis, principalmente pelo alcoolismo e o temperamento intransigente de Cassavetes. “Era mais generalidade eu querer matá-lo do que querer me divorciar dele”, disse a atriz, certa vez.
Posteriormente a viuvez, começou um novo ciclo no cinema mercantil, em papeis muito menos exigentes. Ganhou finalmente um Oscar em 2015, privativo, pelo conjunto da obra. Nas últimas décadas, preferia atuar em filmes dirigidos pela própria prole, fosse o fruto Nick Cassavetes, em “Quotidiano de Uma Paixão”, de 2004, ou a filha Zoe Cassavetes, em “Uma Americana em Paris”, de 2007.
“Não há zero que não possamos entender sobre os outros, se estivermos abertos a isso”, dizia a atriz, explicando por que o público se identificava tanto com suas personagens, ainda que à ourela da loucura. Mas isso é só segmento do processo: o mais difícil, que é fazer o testemunha se penetrar em empatia para tentar compreender um personagem, isso só os grandes atores podem fazer. E Rowlands foi insuperável nesse quesito.