Na rua os covardes continuam sendo covardes. Calados na fileira do mercadinho ou talho, não levantam suas vozes tanto quanto maiusculizam seus caracteres odiosos a alfabetizar pensamentos pútridos. Na verdade, tendem a ser até educados demais, polidos, de voz e cabeças baixas, porque conhecem o funcionamento do que é viver em comunidade e, por vezes, o peso destas sobre suas recalcadas existências. Podem discordar, odiar, mas conhecem e obedecem por puro e simples terror. Aprenderam, na prática, que seu espaço acaba quando o do outro começa. Porém, quando estão online podem liberar o que Freud chamou, em “O Mal-estar na Cultura”, de “um poderoso quinhão de agressividade”.
Não baixa cabeça, pede cabeças. Até perde a própria detrás de avatares de desenhos animados ou bandeiras quaisquer. Persegue, acha, segue, aponta, manda mensagem privada, depois pública, destrói, ri, mostra os dentes digitais, depois publica, exibe para os seguidores quem é que manda prints, sente prazer, dá um F5, vê quantas curtidas tiveram suas salivadas palavras, continua lá, contabilizando, monetizando porque, enfim, se a rua tem leis, a internet ainda está longe disso.
Ouve alguém invocar seu nome. Esquece um pouco do êxtase da caçada do dedo, e assimila o recado: “Vá comprar pão pro moca.”
Baixa a cabeça para o vizinho a colocar o lixo na lajedo, balança essa mesma cabeça para cumprimentá-lo e até rasga um sorriso macio de personagem de figura entusiasmado ou frontispício de dentistas de bairros quaisquer. Caminha concentrado, sem pressa, não aponta os olhos para ninguém, mantêm-nos privados em público, não ri, esconde os dentes, mas mostra instrução quando agradece os pães no saco e a notinha entregue pelo caixa depois de passar o cartão. Pede licença para a moça que continua lá, paragem, ignorando sua existência por distração, sente desprazer, desmoralização, pois, enfim, se a internet ainda não tem consistentes leis —aquelas próprias para tantas especificidades que lhe conferem caráter de meio de informação, a rua tem.
Não ouve ninguém invocar seu nome. Põe o pão na mesa e o mostra para quem manda na mansão. Espera qualquer reconhecimento qualquer, “obrigado, estão quentinhos!”, “você é um paixão!”, “te agradeço”, mas o seu mundo não é assim.
Ao menos não leste que ele tão muito parece compreender depois de horas ouvindo podcasts da novidade velha era, sempre muito iluminados pelas lâmpadas mais apagadas que a razão penumbrada nunca viu. Espuma de raiva, estala os caninos, desbloqueia o celular.
Reergue a cabeça na lojinha online do game onde os lobos conseguem comprar skins de cordeiros, mas preferem as de lobo. Ali podem, ali quererem, ali abocanham o começo em si mesmos. Uivando na fileira dos servidores, levantam o coro da alcateia o quanto podem para minusculizar o clamor frustrante dos que, para eles, são simples presas. Na verdade, tendem a ser até unidos demais, organizados, de rosnar e mirar altos horizontes, porque conhecem o funcionamento do que é viver em cibercomunidades e, por vezes, da exiguidade de peso destas sobre suas criminosas existências. Podem discordar, odiar e conhecem —tanto quanto obedecem— a lei da selva do dedo por puro e simples prazer.
Ensinam, na prática muitas vezes da violência, que seu espaço começa quando o do outro acaba.
“Homo homini lúpus [O homem é o lobo do homem]; quem, depois de tudo que aprendeu com a vida e com a história, tem coragem de discutir essa frase?”, inqueriu Freud. Nós, pensa quem vos escreve. Nós temos sempre que discutir esta frase para não nos tornamos o termo em nós mesmos, de nós mesmos.
Estudo realizado pela SaferNet trouxe dados a serem elevados ao intensidade de problematização que merecem. Denúncias de crimes de ódio cometidos na web cresceram consideravelmente, constando, entre elas, casos de racismo, xenofobia, intolerância religiosa e LGBTfobia. É neste envolvente hostil da internet que chamam de “liberdade” o cometimento de violências contra vulneráveis e de “moderados” os lobos, por vezes, em skins de cordeiros.
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