Cristina Canale: As Várias Possibilidades Da Pintura 15/11/2024

Cristina Canale: As várias possibilidades da pintura – 15/11/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

A primeira vez que visitei o ateliê de Cristina Canale, em Berlim, parei diante de uma pequena tela. “Parece um haicai, é de um minimalismo, de uma economia. E essas pequenas manchas vermelhas nesse pavimento branco são uma vez que vestígios de um trágico acidente na neve”. Ela sorriu e me respondeu: “Engraçado, onde você vê neve, eu vejo uma chuvinha caindo no áspero, e cá, nessas manchinhas verdes e vermelhas, o áspero voltando à vida.”

Nossos pontos de vista completamente opostos em relação à mesma tela —o meu, uma cena dramática de inverno, o dela, uma celebração da primavera—, me lembraram uma famosa anedota sobre o poeta nipónico e rabi do haicai, Matsuo Bashō.

Certa vez, Bashō caminhava com seu discípulo Takarai Kikaku pelo campo, quando foram surpreendidos por algumas libélulas vermelhas que voejavam. Sentindo-se inspirado pelo que vira, Kikaku prontamente ensaiou um haicai que dizia: “Uma libélula vermelha!/Arranco-lhe as asas/Uma pimenta!”.

Ao mostrá-lo a Bashō, à espera de aprovação, o rabi, portanto, exortou-lhe: “A libélula está morta, assim se cria a vida?” E, em seguida, propôs uma pequena inversão que, no entanto, mudava completamente o sentido do poema: “Pimentas vermelhas!/Coloco-lhe asas,/Pasme, libélulas!”.

É evidente que o espanto de Cristina ao ouvir sobre o acidente trágico que eu vira em sua pintura não tinha a ver com aquele de Bashō em relação ao haicai escrito por seu discípulo. O que espantou a artista foi que o sentido que eu atribui à obra era justificável graças aos mesmos elementos pictóricos que compunham o que ela via uma vez que uma chuva no áspero.

Cristina não estava ali recusando o que eu havia visto, muito menos queria me repreender para que eu visse o que ela via, uma vez que quem interroga em tom moralista ou dominador. “Por que você está vendo morte onde eu quis comemorar a vida?”, ou, ainda, “mas sou eu a pintora e só eu sei o que expressa minha obra”.

Na verdade, naquele momento, Cristina compartilhava comigo a mesma perplexidade por termos visto o que vimos e não o que o outro estava vendo, ou vice-versa. Por fim, a pintura, em si, não só admitia essa ambivalência, mas animava-se, enriquecia-se com mais uma demão de sentido.

Diferentemente de poemas, uma vez que os haicais, nos quais o poético se expressa por meio da escrita e, portanto, é sobredeterminado pela linearidade própria desse meio —finalmente, tanto na escrita, quanto na leitura, uma termo só pode vir depois da outra—, as pinturas nos apresentam frontalmente tudo aquilo que as compõem já no primeiro olhar.

É a partir dessa especificidade que pinturas uma vez que a de Cristina se abrem a leituras sem término, sem que nenhuma delas possa ser considerada mais ou menos verdadeira —desde que sejam, para lembrar Marcel Duchamp e sua teoria de “coeficiente de arte”, resultado dos elementos próprios que a constituem e ali se apresentam uma vez que uma esfinge que olha e interroga aqueles que também a olham.

Se em vez de ter escrito um haicai, Kikaku tivesse pintado a cena que vira, sua pintura poderia transmitir, de uma só vez, uma coisa e o seu contrário. E, assim, libélulas poderiam ser pimentas sem que pimentas deixassem de ser libélulas. “Sim, agora entendo o que você vê, e de roupa há cá uma chuva no áspero e um acidente na neve”, concluiu Cristina, diante da pintura. E eu, por outro lado, também passei a ver o que ela via, sem, no entanto, “desver” o que já tinha visto.

Essa início de Cristina para o olhar do outro em relação à sua obra é a marca de sua “moral de trabalho”. A artista não parece sequer querer exercitar domínio sobre a pintura, mas se deixar conduzir por ela e pelo contingência.

Assim, a pintura parece assumir, para ela, a mesma posição de um outro. Ou seja, ela se coloca diante da tela com a mesma postura que mantém enquanto artista diante de seu testemunha. E não há nisto nenhuma dimensão esotérica, pelo contrário: é por compreender o que há de material na pintura, que a artista sabe que não só o corpo a corpo entre ela e a tela, uma vez que também tudo o que está ao volta pode afetar esse processo e surpreendê-la. É geral, por exemplo, que ela comece um quadro no inverno que só poderá ser terminado na primavera, quando a luz do sol aos poucos volta a luzir sobre Berlim.

Cristina tem consciência de que nunca trabalha só, mas com a plasticidade da tinta que gerar transparências, sobreposições, crispações. Com a incidência da luz que determina a vibração exata da cor desejada, com os pelos do pincel que arrastam a tinta, deixando o rastro de sua mão na superfície do tecido.

É por ter essa consciência que a artista pode até ter alguma teoria de uma vez que estrear uma pintura, mas nunca sabe uma vez que ou quando vai terminá-la.

É por isso que Cristina costuma dar alguns passos para trás para ver a pintura a certa intervalo, uma vez que se a obra devolvesse o olhar e dissesse: “agora sim, estou pronta”. Em seu ateliê, olho uma tela e lhe pergunto: “Essa cá, já acabou?”

“Essa aí ainda não, falta alguma coisa, não sei expor o quê”, ela me respondeu. Pode-se conjecturar que talvez a luz do sol em evidente momento da manhã lhe trará alguma resposta, dada pela pintura desde que ela dê, uma vez que sempre faz, um passo para trás.

Quem quer que encare as pinturas de Cristina, saberá que mesmo aquelas que se mostram mais figurativas apresentam imagens que, de qualquer modo, se desbordam. A artista costuma expor que sua pintura vai do figurativo ao abstrato, e arrisco expor que a passagem entre um e outro por vezes acontece em uma só tela.

Naquelas obras em que pinta faces, não se pode reconhecer face alguma, há ali unicamente o prenúncio de uma face que está sempre por vir. Seus retratos não retratam, mas há neles uma desidentificação. E por serem a face de ninguém, podem ser a face de qualquer um.

Já ouvi pintores de diferentes gerações constatarem a pasmo que têm pela habilidade com que Cristina é capaz de gerar sobreposições. Se isso é verdade no que diz saudação às camadas pictóricas, também o é em termos de produção de imagens e, portanto, de sentidos e significados.

Pois há em sua obra uma suspensão deliberada do sentido, não em termos de uma falta deste, mas de uma início poética radical que possibilita não só a sua permanente ressignificação, mas que ali, uma vez que no caso da tela “Chuva no Áspero”, uma coisa possa ser ela mesma e o seu contrário.

Folha

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