[RESUMO] Texto comenta as principais recorrências temáticas e estilísticas da obra de David Lynch, um dos principais artistas do cinema. Dos primeiros curtas a “Twin Peaks: O Retorno” (2017), sua obra-prima derradeira, o cineasta esculpiu seus mundos únicos, espantosamente excêntricos e ao mesmo tempo tão verdadeiros. Mostra no CineSesc até quarta (26) traz os principais filmes do diretor.
Uma mulher sentada escreve missiva ao seu grande paixão. Ela não tem as pernas. Enquanto ouvimos o texto escrito narrado em off, entra em cena um enfermeiro, que faz curativo num dos sobras de perna da mulher. Começa a jorrar sangue incessante. O enfermeiro tenta, por cinco minutos e sem sucesso, moderar a sangueira. A mulher ignora e ainda escreve a missiva.
A cena, única em toda a duração do curta-metragem, é de “A Amputada”, de 1974. Resume à sublimidade o cinema de seu responsável, o diretor norte-americano David Lynch, falecido em 16 de janeiro, quatro dias antes de completar 79 anos.
Toda a obra de Lynch se fixa na premissa brevemente desenvolvida em “A Amputada”: personagens jogados em situações nas quais eles não têm nenhum controle e, exatamente por isso, acabam expostos a todo tipo de estranhamento e acontecimentos insólitos, fora do que seria chamado de normal ou convencional.
Em Lynch, o que move os personagens é a procura por paixão e afeto. Na impossibilidade de compreender objetivo tão sublime, mergulham em atmosferas de pesadelo e lidam não com forças externas ao seu mundo, mas justamente com angústias, anseios e medos de si próprios, sentimentos já existentes e agora extravasados.
Nós, espectadores, testemunhamos o extravasamento, um vômito de delírios que saía da inventividade enigmática de Lynch. É uma vez que se o diretor nos colocasse cientes dos acontecimentos a partir de um pós-acontecimento, o que vem depois, sem se importar em apresentar o pré, o trajo anterior.
Diz-se que a autoralidade de uma obra, principalmente a cinematográfica, está na capacidade de o realizador produzir universos particulares, de decorrer das imagens em movimento e dos sons em profusão realidades que, dentro da tela, tenham suas características próprias e, nem por isso, deixem de refletir o universo exterior —no caso, o mundo dito “real” que está ao volta de quem assiste ao filme.
Nesse sentido, David Lynch poderia entrar no rol dos autores. E disso não há muitas dúvidas —menos pelas propaladas e falsas incompreensões de seus filmes do que pela genialidade em esculpir os tais mundos tipicamente “lynchianos”, o que não significa serem mundos de moca ou de fantasia.
Uma outra marca de autoralidade também pode ser a recorrência de temáticas e olhares. Mais uma vez Lynch se enquadra, o que estimula a recuar a “Eraserhead”, de 1977, seu primeiro longa-metragem, e partir dele para lançar ideias sobre toda a obra ulterior.
“Eraserhead”, antes de ser um filme perturbador, é o filme perturbado de um varão perturbado. Lynch tinha 30 anos quando fez nascente trabalho, em um período complicado. A namorada estava prenhe, mas o bebê não foi planejado. A rapaz, Jennifer, que anos depois se tornou também cineasta, nasceu com várias deficiências nos pés, exigindo cirurgias de urgência.
A paternidade e as dificuldades físicas da bebê impulsionaram o projeto de “Eraserhead”, auxiliado por uma bolsa do American Film Institute em Los Angeles que permitiu a realização do filme.
A pensar na obra seguinte, uma vez que “O Varão Elefante” (1980), “Veludo Azul” (1986), “A Estrada Perdida”, (1997) e “Cidade dos Sonhos” (2001), é perceptível o quanto Lynch se manteve leal ao espírito de sua obra original, acrescentando novos elementos e sempre tratando de si mesmo e do mundo “real”.
“Eraserhead” traz vários tipos de incômodos estéticos, a debutar pelo visual em preto e branco que parece retratar qualquer não lugar habitado por não pessoas que tentam seguir uma não vida.
É um universo de negativismo e pessimismo, no qual tudo caminha contra todos. Logo nos minutos iniciais, o protagonista Henry, vivido por Jack Nance, caminha por fábricas barulhentas. Uma série de gags tenta atrapalhar esse trajeto: a poça de limo, a porta e as luzes do elevador, os cachorros.
Mesmo quando chega à morada da namorada, Henry não fica em sossego. A família da moça é enxurro de disfuncionalidades, o galeto em seu prato ganha movimento próprio ao ser separado e a mãe de sua pretendente o assedia —cena repetida, com variações, em “Coração Selvagem”, 13 anos depois.
Todas as barreiras enfrentadas por Henry o deixam sem controle do envolvente onde transita. O delírio final totalidade se dá com a notícia de que a namorada teve um rebento —ou, uma vez que a mãe dela diz, “uma coisa que está no hospital”, no que a pequena retruca, “ainda não sabemos se é mesmo um bebê, mãe!”.
O olhar aparvalhado de Henry e o nariz que sangra ao saber da notícia da rapaz ilustram toda a galeria de personagens de Lynch —e também a perplexidade de seu público diante de um cinema tão privativo.
As gags se acumulam. Agora casado, Henry é rejeitado pela esposa na leito. O bebê é um monstrinho embrulhado em alguma coisa que mais parece gaze do que fronha. O uso do som, outra possante particularidade de Lynch, amplifica-se. O pranto do bebê, cada vez mais eminente e estridente, provoca a ruptura com a mãe e o termo do himeneu.
Paralela e continuamente, ouvimos o fragor das máquinas que insistem em nunca parar. A trilha sonora é uma nota grave e contínua, e o uso desse tipo de recurso, tanto de sons externos, que em “Eraserhead” contêm a chuva, o ringir de dentes e a coçada de olho, quanto a nota contínua, tornaram-se marcas típicas de Lynch, indispensáveis ao tipo de sentimento que sua obra transmite.
A fruição de seus filmes depende muito do intensidade de riscos que eles nos fazem sentir. Se por vezes um “Coração Selvagem” (1990) pode parecer excessivo na série de citações e referências, “A Estrada Perdida” só é o grande trabalho que conhecemos porque Lynch desrespeitou os limites do convencional.
Se em “Poderio dos Sonhos” (2006) transparece o paroxismo do que de mais “estranho” o diretor é capaz de fazer, “História Real” (1999) tem na aparente simplicidade uma série de desafios ao óbvio que só um artista uma vez que Lynch, disposto a mourejar com tabus, regras e manuais com naturalidade, poderia realizar com tanta economia de recursos.
O cinema de Lynch está sempre em procura de uma imagem de si mesmo. Existe em seus trabalhos a recorrência de personagens que se enxergam —ou que enxergam no outro alguma secção própria que desconheciam. “Eraserhead” tem isso quando Henry vê seu revérbero transmutado em outra figura, numa cena chave de indefinição.
Na série televisiva “Twin Peaks” (1990-1991), o agente Dale Cooper sonha consigo mesmo numa versão envelhecida. Nessa exigência, ouve da assassinada Laura Palmer o nome do culpado por sua morte.
Tanto em “A Estrada Perdida” quanto em “Cidade dos Sonhos” e “Poderio dos Sonhos”, o personagem que se metamorfoseia em outro, ou mesmo que olha para a própria imagem dentro de outro contexto, surge quando há a quebra, a ruptura, tanto dos caminhos percorridos por essas pessoas quanto do filme enquanto objeto narrativo —é no embate entre o “eu” e o “outro eu” que se dá o embaralhamento estético e conceitual que provoca o típico curto-circuito de um filme de Lynch.
Os sonhos que parecem servir uma vez que epifanias aos enigmas nunca são óbvios. Sonhar, num filme de Lynch, pode revelar verdades, mas não é das experiências mais agradáveis.
A imagem de um palco também tem trouxa possante na transfiguração de personagens. Em “Eraserhead”, o fantasia de Henry mostra-o a observar a uma indivíduo esquisita dançando e cantando num palco. Mesmo no preto e branco, é verosímil imaginar as cortinas vermelhas idênticas às de onde dança o liliputiano de “Twin Peaks” ou canta ardorosa e falsamente a artista do Club Silencio de “Cidade dos Sonhos”, ou Isabella Rossellini a hipnotizar o público ao tocar “Blue Velvet” em “Veludo Azul”.
É de espetáculo, finalmente, que também fala David Lynch, uma vez que está no sujeito com deformidades explorado pelo observador em “O Varão Elefante”, na indústria de Hollywood uma vez que envolvente do inferno na trinca “A Estrada Perdida”, “Cidade dos Sonhos” e “Poderio dos Sonhos”, nas estripulias sensacionalistas do parelha enamorado de “Coração Selvagem”, na citada cantora de cabaré de “Veludo Azul”, nos coelhos e nas claques da série “Rabbits” (2002).
Para simbolizar espetáculos, zero mais significativo do que um palco e alguém cantando, dançando ou simplesmente se apresentando (ou sendo apresentado) nele. Não por menos, quase todos os episódios de “Twin Peaks: O Retorno” (2017), grande obra derradeira de Lynch, têm pessoas cantando músicas etéreas por longos minutos.
O que subverte a visão espetaculosa das situações expostas nestes filmes é o caráter falso desses mesmos espetáculos. O varão elefante é um monstro de circo aos olhos dos outros, mas é um ser humano pleno de angústias e vontade de viver. A cantora de “Veludo Azul” encanta quem a ouve, mas sua vida pessoal é um turbilhão desenhado com os piores traços possíveis. A trilogia sobre Hollywood é formada por quebras do que viria a ser a imagem real do sucesso e da ilusão desse campo dos sonhos.
As fitas do parelha de “A Estrada Perdida”, a tradução quase ingênua de Naomi Watts em “Cidade dos Sonhos” e o declínio inteiro da personagem de Laura Dern próximo aos mendigos na Passeio da Nomeada em “Poderio dos Sonhos”, logo antes de ela escutar o grito de “corta” e revelar o artifício, caracterizam a noção de Lynch de que Hollywood é, sim, a terreno dos sonhos, de fantasias e devaneios, e, por cevar tal noção, é também um mundo de pesadelos, desilusões e assombros.
“Não há filarmónica”, repete o apresentador do Club Silencio em “Cidade dos Sonhos”. Com sua consciência, Lynch convocou a todos nós a adentrar no submundo mais profundo da psique humana.