Outro dia, conversava com alguém sobre águas-vivas.
O papo surgiu porque recentemente saímos pra velejar com um companheiro em seu embarcação.
Na hora de saltar pro mergulho, brecamos quase no ar: o mar parecia uma tela de proteção de computador dos 90s, todo pintado de aguamalas (“águas más”) com suas diáfanas cúpulas leitosas de franjas azuis.
Avançamos um pouco, chegamos numa superfície barra-limpa e conseguimos nadar sem levar uma fritura (ligeiro, porque não são das piores) dessas medusas, comuns na costa mediterrânea.
Lembrando desse dia, e relevando o google, seguiu-se a conversa:
— Engraçado. Eu pensava que as medusas eram seres solitários. Será que elas vivem em.. hmm.. manadas? Aliás, uma vez que se labareda o coletivo de medusas?!
— Susana, não sei. Só sei que, depois do que aconteceu em Pamplona, na Espanha pega mal expor “manada”…
***
O famoso caso espanhol da “manada”. Impossível não pensar nele ao ler as revoltantes notícias envolvendo a francesa Gisèle Pélicot, que durante uma dezena sofreu quase uma centena de estupros enquanto era inadvertidamente dopada pelo próprio marido.
Sobre a “manada”:
Em 2016, cinco homens (que, entre eles, se apelidavam justamente de “a manada”) encurralaram e estupraram uma jovem de 18 anos durante a famosa sarau espanhola de San Fermín, em Pamplona — aquela dos touros soltos nas ruas, adorada e eternizada por Hemingway em “O sol também se levanta”, de 1927.
O caso sacudiu o país e se converteu num dos principais propulsores da polêmica lei do “Só o Sim é Sim” sobre agressões sexuais, aprovada em 2023.
Não é o vago paralelo da agressão sexual múltipla que me faz pensar agora na “manada” espanhola.
Uma vez que mulher, e cônscio de muitas histórias de agravo sexual ao meu volta, fico pensando na dor profunda dessas mulheres.
Ambos os casos transcenderam suas particularidades e ganharam tremenda (e importante) repercussão política internacional. Nesse processo de overexposição, porém, nunca é suficiente a procura por justiça: é preciso escrutinar, questionar, botar em incerteza. Dentro e fora dos tribunais.
Enquanto as vítimas lutam para refazer suas vidas, depois de uma insanamente difícil decisão de realizar uma denúncia, os olhares do mundo — especialistas ou não, voyeuristas, transeuntes, simpatizantes, secretistas — passeiam por toda a secção, por todas as suas partes, íntimas ou imaginadas, reais ou transcendentes. O rumor emocional deve ser ensurdecedor. Enlouquecedor.
No caso da vítima da “manada”, até hoje só se conhece sua inicial: C. E, no entanto, sabemos muito sobre sua vida — ou mais do que ela sem incerteza gostaria.
Durante o julgamento, por exemplo, vimos uma vez que se debateram na mídia, nos tribunais e nos comentários de redes sociais os detalhes sórdidos dos vídeos que seus agressores gravaram durante o ato. A maneira uma vez que foi penetrada, a faceta que fez ou deixou de fazer. A indecisão em denunciar. O texto alcoólico da interação, a culpa. Um juiz insinuou que o ato era consentido, que seu silêncio era de gozo. Ela, confusa: só queria que acabasse logo.
Não acabou.
Oito anos depois, C. abandonou os estudos e segue em tratamento psiquiátrico. Mais de uma vez ao longo desses anos, teve que se tutorar legalmente do vazamento de informações pessoais, inclusive imagens gráficas do estupro.
Mais do que tudo, ao longo desses 8 anos acompanhamos uma vez que a opinião pública se dividiu vorazmente entre os que a apoiavam e transformaram em vítima e os que a acusavam de ter sido “cúmplice” da violação, evocando detalhes íntimos das evidências e expondo-a a um escrutínio vexante e sem limites.
Hoje em dia, os cinco membros da “Manada” cumprem penas de 15 anos cada. No entanto, há alguns meses, um deles conseguiu diminuir a pena em 1 ano, aproveitando uma brecha na novidade lei sobre agressão sexual. “Toda semana me ligam da prensa para saber se ela quer conversar, e eu repasso o pedido porque sou obrigada”, disse sua advogada ao quotidiano ABC. “É muito complicado… [Ela] quer manter o anonimato seja uma vez que for, mas diante de qualquer situação se sente vigiada e observada, e isso lhe justificação muita angústia”.
Os depoimentos de C. nos tribunais são uma das bases para o documentário “Você não está sozinha: a luta contra La Manada” (Netflix, 2024), de Almudena Carracedo e Robert Bahar (leia a entrevista com os cineastas cá).
C. não conhecia seus violadores, que lhe ofereceram uma carona num término de sarau e a arrastaram para um beco; Gisèle conviveu com o principal deles por 50 anos.
Gisèle escolheu dar sua faceta, nome e sobrenome aos jornais e ao mundo, recusando o julgamento a portas fechadas. “Estou fazendo isso em nome de todas as mulheres que talvez nunca sejam reconhecidas uma vez que vítimas”, declarou.
No entanto, anônimas ou não, a coragem das duas, em veras ambas expostas e invadidas, é uma coragem mana: mais do que seguir, seja uma vez que for, não embatucar. Por elas, por outras. Ainda que nenhum julgamento, nenhuma retratação, nenhuma punição possa restabelecer os anos perdidos: continuar.
Aguas malas, águas-vivas.
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“Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a robustez que está no meu silêncio.” – Clarice Lispector, Chuva Viva, 1973.
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