Diante de um tribunal de homens muito vestidos, uma mulher precisa narrar uma vez que foi estuprada pelo seu colega de trabalho, réu no julgamento. Quando não são maldosos, os olhares são, no mínimo, desagradáveis.
Por mais opressiva que seja a cena, não há varão qualquer no palco de “Prima Facie”, primeiro solilóquio de Débora Falabella em quase três décadas de curso, que chega neste sábado ao Teatro Vivo, em São Paulo, depois de uma temporada no Rio de Janeiro e uma apresentação em Brasília. Mas sentimos a força dessas visões e preconceitos pelo tom angustiante da atriz, que teve sua performance indicada ao prêmio Shell.
É um peso literal, representado numa rima de cadeiras de epiderme, ao estilo das usadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federalista, criadas por Jorge Zalszupin e semelhantes às peças de Vincent Cafiero —que, na dezena de 1950, fez renome ao traçar cadeiras para executivos, missão reservado a homens.
Antes de se tornar vítima, a personagem de Falabella se sentava nessas cadeiras. Em “Prima Facie” —à primeira vista, em latim—, da dramaturga australiana Suzie Miller e com direção de Yara de Novaes, sua personagem começa uma vez que uma advogada criminal de sucesso, que não hesita em tutelar clientes acusados de assédio ou estupro. Faz secção do jogo, ela diz, e na partida jurídica não cabe ao jurisconsulto especular —unicamente encontrar brechas na argumentação da delação.
“A primeira vez assusta. A relação com a plateia é muito dissemelhante, tudo é dito para ela”, afirma a atriz, sobre o receio de subir ao palco sozinha, correndo o risco de olvidar o texto ou perder o ritmo das cenas. “Precisa de concentração, porque não tem outro ator em cena para salvar você.”
Ainda que o formato seja novo para Falabella, o palco é um território muito familiar —no sentido também literal— para quem imortalizou Nina, a anti-heroína da romance “Avenida Brasil”, de 2012. Desde pequena, ela frequentava os grupos de teatro em Belo Horizonte com o pai, o dramaturgo Rogério Falabella, e a mana, Cynthia.
Assistiu às peças de Yara de Novaes na dezena de 1990 em montagens de clássicos uma vez que “Ósculo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, e “Ricardo 3º”, de Shakespeare. “‘Se eu for fazer teatro, quero ser dessa turma’, eu pensava”, diz a atriz.
“A Débora era uma pequena que gostava de rock, ela era meio dark, meio punk”, afirma Novaes, também indicada ao prêmio Shell pela direção do espetáculo. A parceria nasceu quando fizeram juntas “Noites Brancas”, adaptação do russo Fiódor Dostoiévski. Fundaram o Grupo 3 de Teatro e, desde logo, não ficam fora de edital por muito tempo.
“A Débora carrega o teatro uma vez que lugar de formação e disciplina, em que o outro é sempre mais importante do que você”, diz Novaes. “Ter pretérito por isso deu a ela a qualidade que só uma atriz de teatro pode levar para os outros lugares, daquele que se sabe ser coletivo, plural, em várias instâncias, até na instância poética.”
“Ela nunca teve questões de egolatria, porque isso não é fundante para ela”, diz Yara de Novaes. É por isso, segundo a diretora, que a atriz parece estar na presença de vários atores, ao mesmo tempo, no palco —ainda que sozinha.
Novaes passou a ser para Débora Falabella uma espécie de guru da encenação. Foi para ela que a atriz ligou durante as gravações de “Avenida Brasil”, para discutir uma vez que interpretar sua primeira protagonista no horário transcendente. “Muitas vezes a Yara me preparava para algumas cenas. Eu ia buscar com ela essas maneiras não muito óbvias de simbolizar aquela personagem [Nina].”
A relação tortuosa com Carminha, talvez a vilã mais namorada da teledramaturgia brasileira da dezena passada, vivida por Adriana Esteves, lançou o folhetim para o sucesso pátrio e internacional, e Falabella virou uma figurinha carimbada na Orbe.
Recentemente, foi protagonista em “Aruanas”, série do Globoplay, ao lado de Leandra Leal e Taís Araújo, e viveu Lucinda, personagem vítima de violência doméstica, em “Terreno e Paixão”.
Segundo Falabella, que também coleciona papéis no cinema, em filmes uma vez que “Lisbela e o Prisioneiro” e “O Fruto Eterno”, a principal diferença entre interpretar diante de uma câmera e sobre um palco é o contato com o público.
“A televisão consome você durante um tempo, porque é um ano inteiro gravando uma romance. O público é muito grande, mas, ao mesmo tempo, você não sabe o que o público está sentindo quando assiste”, afirma a atriz.
Apesar de estar dentro da mansão de milhares de brasileiros, todos os dias, a sensação é de distanciamento. “Na TV tem essa intervalo mesmo, que é preciso ter. Você sai na rua, as pessoas falam, vira meme”, diz, lembrando as centenas de piadas envolvendo diálogos entre Nina e Carminha, que rodam até hoje pela internet. “No teatro você sente na hora, cada respiração, cada reação.”
Porquê exemplo, ela lembra o momento em que a sua personagem em “Prima Facie” relata, depois dos primeiros minutos de peça, enquanto ainda estava radiante com sua vida bem-sucedida regada a festas pós-expediente, a violência sexual. “Eu sinto a plateia caindo em um eversão comigo.”
Ao mesmo tempo, o alcance das telinhas proporciona um impacto inegável, que, ela espera, pode impulsionar os espetáculos.
“Uma pessoa muito popular tem a possibilidade de formar [um novo público] de teatro”, afirma Novaes. “Ali [no teatro] as pessoas vão mourejar com jogos, convenções e metáforas que normalmente na televisão não há. É esse pacto de credulidade que o teatro propõe, que a televisão não precisa propor —eu finjo que eu morro, e vocês fingem que acreditam. Mas, para vocês acreditarem, eu preciso morrer muito muito.”