Manfried Sant’Anna, o Dedé d’Os Trapalhões, diz se sentir em moradia quando se ergue no picadeiro do circo. Não poderia ser dissemelhante. Fruto de uma contorcionista e de um cigano —”e aí saiu essa merda cá”, ele brinca—, Dedé foi criado sob a barraca do circo, onde aprendeu tudo o que faria dele ator e humorista.
Aos 88 anos recém-completados, Dedé Santana recusa a teoria de se reformar. Ele viaja pelo país com o circo itinerante Illusion Circus, do qual é sócio.
Mas o trabalho não vai muito. “O circo enfrenta dificuldades porque precisa de muita documentação para ter patrocínio. Não temos toda essa documentação. E também não temos ajuda do governo.”
Em 2020, dois meses antes da pandemia, Dedé foi a Brasília para almoçar com o portanto presidente Jair Bolsonaro para tutorar os interesses do circo. Só que, por um imprevisto, Bolsonaro não pôde conversar com o comediante. Só deu tempo de tirarem uma foto.
Dedé saiu de lá com a promessa de que veria o ex-presidente em breve, o que não aconteceu por motivo da Covid-19, que abaixou as barracas dos circos e os pôs sob uma de suas piores crises. Hoje, no governo Lula, a situação tampouco melhorou, ele afirma.
“Andei detrás do Tiririca [deputado federal pelo PL] para falar sobre isso, mas ele me disse que fazia os pedidos e ninguém os assinava. ‘Eles [os políticos] estão cagando para o circo’ o Tiririca falou.”
Dedé considera o circo “mãe de todas as artes”. Sua participação nos espetáculos se tornou mais comedida com o progresso da idade —ele parou de fazer piruetas, pilotar motocicletas em globos da morte e de se pendurar em trapézios. Agora sua performance se resume a um oração bem-humorado no início do show.
“Vejo o rosto das pessoas mais velhas da plateia e é emocionante, porque o povo fica doido com minha presença.”
No auge do programa “Os Trapalhões”, na dez de 1980, Dedé virou uma das figuras centrais do elenco da Mundo, daquelas que todo mundo conhecia devido à televisão. Ainda que o Didi de Renato Aragão fosse a estrela, não havia piada sem Dedé —ele era o escada do grupo, aquele que sabe identificar quando e uma vez que dar a deixa para o outro fulgurar. “Eu era o Garrincha. Chutava a globo para o Pelé marcar o gol.”
Dedé e Didi eram uma vez que um só. Lançaram dezenas de filmes e protagonizaram outros programas de TV. “Nosso primeiro encontro foi engraçado porque eu disse ‘prazer, Dedé’, e ele respondeu ‘prazer, Didi’”, lembra o humorista, e dá risada.
Os Trapalhões, quarteto formado por Dedé, Didi, Mussum e Zacarias, sagraram-se figuras essenciais da comédia brasileira. Hoje, porém, há quem diga que algumas de suas piadas eram preconceituosas e ofensivas. Mussum, que era preto, já fora chamado de macaco ao longo dos episódios, por exemplo.
O politicamente correto amordaçou os comediantes. O próprio Mussum me dizia ‘naquela cena, me labareda de negão’. Hoje você não pode falar ‘negão’. Eu adorava quando o Renato dizia que eu era gay, eu até fazia gestos, achava uma maravilha. Hoje você não pode mexer com gay nem com a cor [de pele]”, diz Dedé.
Didi era o cabeça d’Os Trapalhões, quem tomava a frente dos projetos, fazendo as vezes de produtor, além de ator. A Dedé, restava incrementar as graças que faziam.
Nem sempre dava notório. “A gente brigava muito por motivo de trabalho. A teoria de ‘A Filha dos Trapalhões’, por exemplo, foi minha”, diz ele, mencionando o filme de 1984. “Mas aí, no meio da gravação, o Renato disse que não estava sentindo uma relação potente com a rapariga. Eu falei ‘Renato, está tendo sim, eu sei porque estou dirigindo’. Fiquei estressado. Mas eu era só o diretor, e ele o possessor e produtor.”
As picuinhas resultaram numa separação do grupo, em 1983, posteriormente uma bulha por salário. Dedé, Mussum e Zacarias reclamavam que Didi ganhava muito mais moeda que eles.
Dedé confirma ter se sentido desvalorizado, mas garante que são águas passadas. “O Renato não é só meu camarada, é meu irmão. Aprendi muito com ele”.
Os dois só não se encontram com tanta frequência porque Dedé mora em Santa Catarina, e o Renato no Rio de Janeiro. Ele, aliás, passou anos recluso por motivo da pandemia de Covid-19. Desde o mês pretérito Didi tem visitado São Paulo por motivo do espetáculo “Adorável Trapalhão”, que encena sua vida no teatro VillaLobos. A temporada termina neste final de semana.
“Fui na moradia do Renato há uns meses e tivemos uma bulha. Falei ‘para com essa coisa de só fazer dancinha, porra, fica recluso em moradia, você vai permanecer velho’”, conta Dedé. “Parece que ele me ouviu. Disse que a estreia do músico foi um sucesso.”
Para o horizonte, Dedé quer mais trabalho. Diz que vai lançar um livro ilustrado, que pretende fazer um documentário —”só tem que percorrer detrás de moeda”—, e que sonha em gravar mais um filme com Renato, que já tem até roteiro, mas foi recusado pelo ex-parceiro. “Quando ele fala que ‘não’, é difícil voltar detrás. Ele tem uma vocábulo dura.”
Ao termo da entrevista, Dedé se apronta para trespassar do quarto de hotel, em São Paulo, e viajar até seu próximo compromisso. Sorri, satisfeito com a conversa, sem dar sinais da mortificação que havia compartilhado com o repórter minutos antes —o temor de falar qualquer coisa errada.