Em um sistema patriarcal, mulheres partem de um lugar social que as espera na função do zelo, na disponibilidade para servir. Para muitas, é um processo multíplice desenvolver a capacidade de proferir “não” e se justificar com um “porque não quero”. Ainda, diante de uma insistência, finalizar dizendo “obrigada, mas não tenho o menor interesse”.
Por que é tão difícil proferir não? Bom, vale proferir que existem inúmeras pessoas com dificuldade de proferir não por uma série de motivos individuais, seja a vaidade de tentar deleitar todo mundo, seja por testar relações hierárquicas profissionais abusivas, ou qualquer outro motivo.
Porém, podemos nos aprofundar nessa questão por uma perspectiva estrutural e, nesse sentido, vamos trabalhar nesse texto com essa pergunta a partir de um olhar feminista.
Infelizmente, vivemos num país que possui um dos mais altos índices de feminicídio do mundo. Ou seja, um “não” pode ser visto com muita raiva e desencadear uma tragédia, porquê tem realizado de forma endêmica.
Somente nas últimas semanas, foram divulgados casos de mulheres mortas por dizerem “não” quando decidiram terminar o relacionamento, seguir com uma gravidez não planejada, ou, ainda, quando assumiram suas vidas profissionais.
De outro lado, precisamos questionar a formatação feminina para proferir “sim”, um oposto imposto ao “não”. Segundo dados do IBGE, divulgados na Folha na última semana, o Brasil tem, em média, 40 casamentos de meninas a cada dia —a maioria deles com parceiros maiores de 18 anos, 95,4%. Quais condições essas jovens têm para se opor ao “sim”?
Essa imposição está na vida de muitas de nós: “sim” para beijar na boca, “sim” para transar, “sim” para cuidar da moradia, “sim” para fazer a comida. Tornar-se mulher, parafraseando Simone de Beauvoir, é estar enredada em uma situação em que se impossibilita a transcendência. É impor o proferir “sim” aos homens.
Conforme vamos tendo contato com a teoria feminista, entendemos de que forma a mulher é impactada pela expectativa que se tem do Outro. A expectativa do “sim” alimenta os obstáculos para o “não”.
Na crise de alteridade experimentada por quem reivindica sua humanidade, diante de uma construção patriarcal e racista que a nega porquê sujeito de direitos, é porquê se fosse esperado da mulher um eterno “sim, senhor”, o que está presente nas relações com o marido, filhos e nas relações de trabalho.
Isso também se verifica na experiência de pessoas negras, numa sociedade construída historicamente sob o tirania da escravidão. Mulheres negras ainda experimentam esse constrangimento entre diferentes grupos, o que nos mostra porquê essa expectativa de servidão está enraizada nas relações cotidianas.
Fixadas em um lugar de subalternidade social, nossas ancestrais desenvolveram a arte de proferir “não” porquê uma verdadeira tecnologia de resistência diante de as dificuldades materiais postas em suas vidas.
Para muitas daquelas que vivem uma requisito econômica favorável, o fortalecimento para proferir “não” demanda tempo. Eu mesma tinha uma dificuldade enorme de proferir “porque eu não quero”.
Por muito tempo, pensava que era necessário erigir uma desculpa mirabolante todas as vezes que queria proferir não —e eu queria muitas vezes por semana.
Em casos recorrentes na minha vida profissional, o conflito de consciências esteve entre a expectativa de quem fez o invitação, o qual, para muitas pessoas, estava mais para notificação —uma vez que tinha que admitir— e a minha própria expectativa de quem queria ser deixada em silêncio.
Nesse projecto de fuga, quantas vezes minha filha ficou doente. Brinco cá em moradia e digo para ela “Thulane, se em qualquer evento em que você estiver comigo, alguém vier te abraçar com uma certa condescendência e proferir que sente muito pelo que acontece na sua vida, é porque eu já falei tantas vezes sobre você estar doente, que estar viva e muito é um milagre da medicina, minha filha”.
Mesmo sendo uma desportista padrão de saúde, ela já teve gripe, já quebrou a perna e sofreu com catapora e rubéola. Em outras vezes em que eu conseguia, com muita dificuldade, proferir “não”, fui invadida por um sentimento de culpa, mais uma imposição nessa sociedade patriarcal.
Seja na minha vida, ou naquela da mulher ao meu lado, o “não” se colocou porquê um problema. Mas devemos reivindicá-lo, pois ser humana é gozar da liberdade de entender o que te interessa, sem que isso seja uma cisma.
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