Sufocado pelo vazio de uma pequena sala, o papa Bento 16 questiona seus princípios e propósitos. É na Sala das Lágrimas, espaço restrito ao público e sagrado no Vaticano, que o líder religioso confidencia grandes angústias ao público. Os próximos passos são incertos e há motivos para crer em sua repúdio.
Em outra cena, desta vez na Argentina, o cardeal Jorge Bergoglio reflete sobre a natureza humana e seus pecados. O sermão não esconde o lado pecaminoso do pároco e o varão demonstra não temer os erros cometidos em sua trajetória. Ao final do ilustrado, ele desabafa com uma jovem leal sobre a vontade de se reformar.
Em 2019, os tormentos da dupla sacra chegaram à Netflix na pele de Anthony Hopkins e Jonathan Pryce. Agora, “Dois Papas” chegam aos palcos brasileiros com as performances de Zécarlos Machado e Celso Frateschi. Em seguida uma breve temporada no Sesc Guarulhos, a peça fica em papeleta até o final de abril no Sesc Santo Amaro, na capita paulista.
Sob a direção de Munir Kanaan, personalidades completamente diferentes cruzam o mesmo cenário. Quando os dois marcam um encontro para conversar, o conservadorismo de Bento se encontra com as ideias liberais de Bergolio. Apesar dos atritos, surgem perspectivas que podem mudar todo o papado.
Em meio a esse estado de modificações, as batinas ocupam um envolvente subjetivo, repleto de estruturas e formas brancas, onde tudo está sujeito às necessidades da encenação. Vasos, livros e outros adereços transformam um jardim em sala de estar, mesas se convertem em pianos e a imaginação pode conceber qualquer lugar ou objeto.
“Uma das coisas que mais me toca nessa dramaturgia é a possibilidade de um diálogo. Essa história não se restringe a uma religião específica. Ela traz visões diferentes que se encontram e procuram uma maneira civilizada de crescer uma com a outra”, diz o diretor.
Ele explica que o projeto nasceu de seu contato com o filme de Fernando Meirelles e ganha proporções temáticas na conexão com a pandemia brasileira, quando o negacionismo imperava e os limites entre a vida e a morte se confundiam.
Seu exalo o levou até o material de origem —livro homônimo escrito pelo britânico Anthony McCarten— e à invenção de uma versão anterior na Inglaterra. Esta é a primeira montagem que a obra recebe no Brasil.
“A peça encontra um cenário muito instável por conta da saúde do papa Francisco. Estamos vivendo um momento repleto de incertezas, próximo ao que Ratzinger [sobrenome verídico do papa Bento 16] vivia quando renunciou. Ele resistia a mudanças mas também se entregava a uma série de reflexões sobre problemas que precisavam ser revistos pela Igreja”, afirma Machado, que interpreta o líder religioso.
O ator compara o espetáculo com contradições do mundo atual, em que regimes de ultra direita insistem em retornar e o armamentismo ressurge uma vez que coligado de conflitos geopolíticos. Ele cita o sucesso do filme “Conclave” —drama indicado Oscar que acompanha os bastidores da eleição de um novo papa— uma vez que outra evidência para a contemporaneidade desses assuntos.
“Talvez seja necessária uma novidade vaga de mudanças a partir do Vaticano. Nós estamos vendo o planeta tremer com vozes radicalmente discordantes. A gente vê uma besta fera uma vez que Donald Trump, por exemplo, falando sobre as questões na Ucrânia. E vemos as bestas feras de Binyamin Netanyahu tomando a Palestina”, diz o artista.
No caso da Igreja, Frateschi observa um histórico idoso de instrumentos utilizados para prometer sua permanência. Seu personagem aparece para colocar o sistema em cheque e desafia preceitos uma vez que o repúdio ao tálamo gay, por exemplo.
“Existe ali um movimento pendular que em muitas sucessões foi da chuva ao vinho. Mas há ainda uma sabedoria que sempre mantém ela de pé. Seria ótimo se pensássemos o planeta enquanto um pouco coletivo. Mas a Igreja parece preservar um siso de autoproteção e tenta manter esse poder secular a qualquer dispêndio”, diz ele.
Com variadas superfícies à escolha, labareda a atenção também o trabalho de projeção, que inscreve vídeos e imagens digitais. Idealizada por André Grynwask e Pri Argoud, a instrumento suspende a neutralidade do espaço ao simular locais uma vez que a Capela Sistina e oferecer evidências de problemáticas que atravessam a peça.
Sejam as manchetes sobre abusos sexuais cometidos por padres contra menores, registros de manifestações sociais ou outros tipos de mediação visual, é uma forma de expandir o palco e a conscientização do público.
“O teatro é o nosso fascínio. Ele carrega sua própria magia e propõe um mundo idealizado. Mas isso não quer proferir que a vida não possa ter a sua formosura. Eu penso que essa peça vem somar a um momento de prosperidade artística e convida o testemunha a tomar consciência do que realmente importa”, diz Machado.