A sensualidade elegante, o calor “cool” que dá o tom de “Pique”, primeiro álbum solo de Dora Morelenbaum, aparece já na filete de sinceridade, a balada jazzy “Não Vou Te Olvidar”.
Essa atmosfera vai se desenrolando, ganhando camadas ao longo das faixas seguintes, até chegar na última, “Nem Te Procurar”. Com alguns segundos de audição, percebe-se que a cantiga é a mesma do início do disco, mas com outro nome e outro “mood”, num intentona de disco music.
“Não vou te olvidar, nem te procurar”, diz o refrão de onde foram tirados os nomes das duas faixas —o que diferencia o espírito delas é a secção da frase que o eu-lírico enfatiza. A repetição da cantiga é motivada pelo libido de pôr na rua os dois arranjos que ela e a orquestra, ao lado da produtora Ana Frango Elétrico, tinham desenvolvido, sem precisar optar por um ou outro. Mas Dora explica que há mais do álbum que se revela aí.
“Essa dualidade dá a face do disco”, diz a cantora, que assina a coprodução do álbum. “A gente gostava muito das duas versões, e aí num tentativa a gente se deu conta de que elas falam de lados diferentes do disco.”
É uma boa forma de entender “Pique” e sua musicalidade que se equilibra entre coração e tesão. “A balada contém tesão também, né? Mas, enfim, são tesões diferentes”, diz Dora.
“Não Vou Te Olvidar”/ “Nem Te Procurar” foi a primeira parceria que Dora escreveu com Tom Veloso. “Ainda antes de ‘Dó a Dó’, que também escrevemos juntos”, diz a cantora, referindo-se à música que lançou em 2020.
A cantiga foi também a primeira a entrar em “Pique”, quando ela começou a imaginar o disco, ainda durante a gravação do álbum “Sim Sim Sim”, do Projéctil Libido —que ela integra ao lado de Julia Rabi, Lucas Nunes e Zé Ibarra.
“Já tinha algumas músicas que eu tinha guardadas, mas que não entraram no primeiro EP [‘Vento de Beirada’, de 2021] porque não faziam secção daquele universo. E não entraram no Projéctil também porque eu achava que não tinham a ver com aquele projeto”, afirma Dora.
Mal um álbum começou a se traçar em sua cabeça, ela pensou em Ana Frango Elétrico para produzir. “Eu tinha gravado em seu segundo álbum, ela também coproduziu o disco do Projéctil. Ela estava presente, próxima”, diz Dora. “Mais do que isso, pensei nela a partir das referências que eu imaginava para esse disco.”
De início, Gal Costa —principalmente a do “Permitido”, de 1970— era uma referência medial. Ao longo do processo, porém, Dora foi caminhando em outras direções que se mostram de maneira mais evidente em “Pique”.
“Um pouco mais R&B, jazz, soul. Tirando um pouco essa roupa de MPB, que é um monte de coisa e não é zero. Que não é a Gal, porque ela não é MPB, é outra coisa. Eu também não sou”, diz a cantora. “Enfim, essas primeiras referências tinham um tanto de rock brasílico, tropicalista, mas depois pensei em PJ Morton, Erykah Badu, Kali Uchis, Thundercat. E daqui do Brasil coisas menos tropicalistas, porquê Cassiano.”
Para erigir essa sonoridade, Dora e Ana reuniram uma base de artistas nos quais técnica e inventividade caminham lado a lado. São eles Sérgio Machado, na bateria, Alberto Continentino, no insignificante, Luiz Otávio, nos teclados, e Guilherme Lirio, na guitarra.
Diogo Gomes e a própria Dora assinam arranjos de sopros, executados por ele, no trompete, Marlon Sette, no trombone, e Jorge Continentino, no clarinete. A faixa-título tem Aline Gonçalves na flauta e no clarinete, e Janaína Porto no corne inglês. Dora assina ainda arranjos de cordas, um deles com seu pai, Jaques Morelenbaum. O percussionista Marcelo Costa marca presença em cinco faixas.
“Meu lance com a música vem muito de um lugar do belo. A música brasileira tem muito isso. A gente preza muito pela venustidade, a estrutura harmônica, melódica. Tem uma coisa muito perfeita. E foi justamente isso que eu comecei a questionar. Eu acho que a venustidade mesmo é ruidosa também. Falei: ‘Quero que contenha rumor nessa venustidade’”, afirma Dora, dando uma chave de entendimento para “Pique”, numa conversa na qual cita criadores porquê Billie Eilish e Tyler, The Creator.
Além de parcerias com Tom Veloso —além de “Não Vou Te Olvidar”/ “Nem Te Procurar”, há outras três e uma que o compositor assina sozinho—, Dora gravou duas músicas que fez com Zé Ibarra e duas outras só suas, além de uma de Sophia Chablau. Josyara participa do disco, além de seus colegas de Projéctil Libido.
“Me parece que agora tem esse reconhecimento dessa geração sobre si mesma, da minha galera em relação às galeras para além da gente, os grupos se cruzando”, diz Dora. “Tem uma vontade de se fortalecer porquê cena, mas ao mesmo tempo reconhecendo que são várias caixas muito diferentes.”
Dora vê que sua geração tem uma curiosidade músico e artística sobre seus colegas, mas acredita também que eles estão irmanados na investigação de entender porquê ocupar o mercado da música hoje. “É um mercado estranho, porque ou você está na crista da vaga mainstream ou consegue, às vezes, tocar numa lar para século pessoas. É um gap muito grande.”
“Esse lance do mercado sempre virar um tópico é muito sintomático e horroroso, mas ao mesmo tempo é real. A gente vive nesse mundo muito doido em que esse mercado nem é um mercado de música, é um mercado de verba no qual a música está tentando se sustentar”, afirma a cantora. “Os festivais não são festivais de música, são festivais de marcas, né? Eu tenho sempre esse desvelo de lembrar o motivo pelo qual estou cá, que é a música.”
Outro tópico que sempre chega a Dora é o trajo de ela fazer secção do grupo de músicos de sua geração que carregam no sobrenome uma linhagem da MPB —em seu caso, ela é filha do maestro Jaques e da cantora Paula Morelenbaum.
“É muito estranho essa coisa provinciana de saber o nome das famílias viver até hoje numa cidade porquê o Rio. Ao mesmo tempo, superentendo que exista”, diz a artista. “Essa semana recebi uma mensagem incrível no Instagram: ‘Eu te odeio, Dora. Mas eu te senhor porque você apesar de ser cis, branca, privilegiada, nepobaby, você é incrível, portanto a gente vai ter que te aturar’. É fã e hater.”