Elis apresenta programa de rádio inédito de 1967; ouça

Elis apresenta programa de rádio inédito de 1967; ouça – 23/04/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Com potente sotaque carioca, Elis Regina locuta regras de etiqueta, lê as previsões do horóscopo, canta, conta piadas, responde a cartas de ouvintes, recita “Soneto de Fidelidade”, de Vinicius de Moraes, e homenageia o compositor Ary Barroso.

Em outro momento, conduz um bate-papo relaxado com Claudette Soares —”uma das maiores cantoras que o Brasil tem”—, Nana Caymmi —”a mais bagunceira”— e Marília Medalha —”que está começando agora e já é queimação na jaca”. As quatro se atropelam, às risadas, ao comentar os festivais de música, seus compositores, as vaias, o papel dos costureiros de portanto e as minissaias. “Paixão, eu só tenho um temor: de as saias voltarem a ser compridas”, diz Soares.

Tudo isso e outras coisas mais estão em um programa de rádio inédito, gravado no mês de outubro de 1967, que nunca viu a luz do dia por um desentendimento nos bastidores. Mas para se compreender o que é esse piloto da atração, batizada de “O Esquina de Elis”, há de se saber quem revelou à Folha esse tesouro de quase uma hora de duração.

Carlos Leite Guerra, espargido no meio publicitário uma vez que Pança, de 83 anos, nasceu em 1941, na cidade de Fafe, a respeito de 400 quilômetros de Lisboa. Aos 12, ele se mudou com a família para São Paulo. Mais tarde, deixaria o curso de recta e o tarefa num banco para dar vazão a seu espírito criativo —sem deixar de levantar uma grana.

Enveredou para a publicidade, com a música, uma de suas grandes paixões, a tiracolo. Com as várias agências de publicidade e produtoras de áudio em que trabalhou, visitava os departamentos de rádio e televisão das empresas, sempre levando uma peça músico na manga.

A primeira que emplacou foi um jingle de Natal para as Casas Pernambucanas, composta por integrantes do grupo Titulares do Ritmo, sexteto vocal e instrumental, donos com mais dois sócios do estúdio Tarifa, onde Guerra trabalhava.

Daí para frente, o jovem pegou palato pela coisa e passou a produzir jingles, spots e trilhas para rádio, TV e cinema, sempre com o auxílio de músicos tarimbados, entre eles o compositor Theo de Barros e o maestro Chiquinho de Moraes, que trabalhava com Elis Regina.

Por conta da amizade com Chiquinho, Guerra se tornou “chegança” de Elis, frequentando o apartamento da cantora —à idade, no Condomínio Agulhas Negras, 125, no núcleo de São Paulo. “Ia na vivenda dela, saíamos para manducar e conversávamos sobre tudo, enquanto o Chiquinho e o Ronaldo [Bôscoli, produtor e compositor] só falavam sobre música. Com o tempo, fui percebendo que ela era muito carente de atenção e de tudo”, diz Guerra.

“Às vezes, ela me deixava louco também. Uma vez, saindo do hotel Danúbio, quando abrimos a porta do saguão, veio um monte de gente e uma rapariga com álbuns dela para serem autografados. Ela ficou puta. Eu disse: ‘oh, Elis, pelo paixão de Deus!’ Mas a pessoa famosa não tem liberdade, não tem vida, sabe? Ela era uma pessoa de opinião, mas simples. Ela mesma se maquiava. Eu a vi costurando sua própria anágua”, diz o português, responsável da letra do primeiro hino da Portuguesa, o “Rubro-Verdejante”.

“A letra é minha, e a música, do Archimedes Messina , que fez a música de brecha do programa do Silvio Santos e um monte de jingles conhecidos, entre eles o do Moca Seleto. Agora, imagine fazer uma letra para um time que nunca havia ganhado zero. Pretérito um tempo, Roberto Leal fez outro hino, que eu acho até mais adequado que o meu.”

A originalidade de Guerra lhe rendeu uma vaga uma vez que assistente de rádio e TV na escritório de propaganda Norton, que tinha o departamento sob a chefia de Divo Dacol. Sabendo da proximidade de Guerra com Elis, propôs que produzisse um programa com ela.

“A gente iria gravar, montar os comerciais, plagiar e mandar para as emissoras do Brasil. O programa seria de variedades, falando de horóscopo, contando uma historinha, dando um parecer, tocando uma música, entrevistando alguém”, diz Guerra. Daí nasceu esse “esquina”, não só músico, mas que remetia a um espaço rendeiro e íntimo da artista.

“A Elis foi muito lícito, não perguntou o que iria lucrar. Nem eu falei nem ela perguntou. Marcamos um dia, fomos lá na Sonotec [estúdio que existiu na rua Riachuelo, no centro de São Paulo], ela levou o quinteto do Luiz Loy e fizemos ao vivo. Ela falava, os caras tocavam e gravamos o que saiu no estúdio”, diz o produtor.

O grupo havia participado, em 1966, da gravação ao vivo do segundo LP da série “Dois na Bossa”, com Elis e Jair Rodrigues, e era formado por músicos de primazia —Loy, no piano e arranjos, Papudinho, no trompete, Mazzola, no saxofone, Bandeira, no contrabaixo acústico, e Zinho, na bateria.

No piloto, Elis canta músicas uma vez que “Imagem”, de Luiz Eça e Aloysio de Oliveira, “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, e “Pra Machucar Meu Coração”. Há ainda “Três Lágrimas”, de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas. Intercaladas às músicas e aos quadros conduzidos pela cantora, oito inserções comerciais apresentam carros da marca Volkswagen em textos bem-humorados.

A produção ficou a incumbência de Guerra, enquanto Dacol cuidou de encaminhar e ortografar o programa. Mas, pouco antes da gravação, Elis contou que se casaria com Bôscoli e que, uma vez que ele estava cuidando de sua curso, deixaria a supervisão do piloto a incumbência dele e de Luís Carlos Miele —com quem formava uma das mais influentes duplas do entretenimento pátrio. Guerra concordou, mas diz que os dois não estiveram presentes na noite da gravação.

Posteriormente o tálamo, em dezembro de 1967, Bôscoli viajou a São Paulo e convidou Guerra para um uísque na extinta boate Blow Up. O recado era que teriam de expelir a participação de Dacol do projeto, pois tinha muita gente envolvida. Caso contrário, sobraria pouco moeda para os outros envolvidos. Guerra não concordou, contou a situação ao superintendente e, de pronto, o projeto foi engavetado —nunca mais se tocou no tema. Dacol, Bôscoli e Miele já morreram.

Com isso, “O Esquina de Elis”, que trazia amenidades acompanhadas de música de subida qualidade, foi mais uma boa teoria engavetada, guardada há quase 60 anos no registro pessoal de Guerra.

Nesse material também ficaram escondidos comentários das artistas sobre o 3º Festival da Música Popular Brasileira, cuja final ocorreria em outubro de 1967. Medalha defendia “Diana Pastora”, de Fernando Lobo e João Mello, e “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam.

Nas duas músicas, ela contava com o grupo Momento Quatro, formado por Zé Rodrix, Ricardo Villas, Maurício Maestro e David Tygel. “Defendo ‘Ponteio’, com o Edu. Eu realmente gostei imensamente da música logo que ouvi. A música de Fernando [Lobo, ‘Diana Pastora’] eu acho formosa também, mas tinha outras mais fortes”, diz ela, sem saber que “Ponteio” seria a vencedora.

Já Elis defendia “O Cantador”, de Dori Caymmi e Nelson Motta. “Eu realmente não esperava muito dela, sou muito sincera. Não esperava porque eu via que o envolvente universal não era muito propício a músicas tranquilas, pacatas, calmas e serenas, mas até que deu uma reviravolta”, diz.

“Fiquei feliz por Nelsinho e por Dori, que conseguiu botar para fora todos os sorrisos que ele armazenou durante seus 23 anos de vida. Ele é o varão que não ri. E agora vamos esperar o dia 21 com metralhadoras, bombas e o diabo, porque a barra tá muito pesada.”

Ouça outros trechos do programa inédito.

Folha

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