Mais do que a sinopse, vamos mourejar com a cena inicial —pequena em desespero vestida num pijama vermelho e identificada nos créditos uma vez que “The Lady” corre por uma dimensão descampada. Não se sabe, inicialmente, de quê ou de quem ela foge, mas é evidente a situação de fuga por sobrevivência. O filme se divide em seis capítulos, com os segmentos apresentados fora de ordem cronológica.
Na superfície, “Desconhecidos” surge uma vez que um thriller de suspense com rostro de produção independente dos anos 1990 —captação de imagens anunciada em película 35mm, torcida dramático em pleno curso, cronologia embaralhada, longas cenas de conversa seguidas de intensas sequências de violência e referências visuais com qualquer conforto pop. Em princípio, passa uma vez que uma mistura de Quentin Tarantino e irmãos Coen.
Mas zero é tão simplório no trabalho de JT Mollner. Tudo é tratado com tanta autoconsciência que ele nega os recalques mais convencionais desse tipo de produção. O cineasta evita afagar ou confortar os espectadores com qualquer tipo de oração esquerdomacho embuçado de filme de horror que, sob figura de sátira social, reafirmaria desequilíbrios de poder, uma vez que volta e meia acontece. “Desconhecidos” faz em 90 minutos, com muito mais impetuosidade, o tipo de manobra que Ti West tentou em três longas seguidos, “X – A Marca da Morte”, “Pearl” e “MaXXXine”, entre 2022 e 2024.
Os truques do filme têm supino potencial de irritação, mas Mollner, também roteirista, faz dos artifícios formas instigantes de adentrar nas idiossincrasias dos personagens. Questões sobre tal ou tal evento suceder antes ou depois ficam secundárias, se o testemunha se permitir transpor com olhos livres a atmosfera embriagante.
O péssimo título adotado no Brasil não dá conta do original. “Strange Darling” carrega diversas ambivalências, as quais Mollner articula de forma a continuamente recuar das expectativas mais típicas. Ele segue rumos livres, ainda que calculados, sem a preocupação de adequar o labirinto narrativo a lógicas internas previsíveis.
A estrutura do relato, apesar de definidora, não se sobrepõe a seus efeitos. Na prática, as questões a transpor “Desconhecidos” orbitam as mesmas de “Babygirl”, o questionável filme de Halina Reijn no qual a CEO de Nicole Kidman tem impulsos de libido a partir de fantasias eróticas de dominação e explora limites entre controle e vulnerabilidade.
A jovem vivida por Willa Fitzgerald, das séries de TV “Pânico” e “A Queda da Lar de Usher”, interage enxurro de insinuações com o varão interpretado por Kyle Gallner, nos créditos identificado uma vez que “The Devil”. A noitada revela várias camadas a partir de fetiches dela e dos consensos e acordos em aplacar vontades num mundo referto de riscos a posturas femininas autossuficientes.
“Você tem alguma teoria do tipo de risco para uma mulher uma vez que eu toda vez que ela concorda em se divertir um pouco?”, questiona a moça. Os perigos citados não são somente os que ela expõe sem o público perceber. Secção do inesperado se deve mais ao que a pequena faz pressupor do que aos acontecimentos adiante.
As surpresas de “Desconhecidos” são menos da ordem do plot twist e mais da expansão de camadas a cada novidade no modo randômico assumido por Mollner. Não fosse essa forma de exposição, o filme manteria suas questões urgentes e removeria as inquietações dos personagens e dos espectadores. A consequência seria, talvez, muita “relevância” sobre tensões entre homens e mulheres e baixa pungência expressiva para além de maneirismos visuais.
Mollner não quer melhorar o mundo de ninguém, e sim complicá-lo ainda mais. Se não deve ser chamado de subversivo, “Desconhecidos” tampouco é ingênuo. O diretor sabe operar mecanismos de suspense e de sensacionalismo com a mistura de grosseria e elegância tão marcante a nomes do pretérito uma vez que Tobe Hooper e Wes Craven, empacotados no ritmo mais frenético das dinâmicas virtuais do século 21.
A retrato, inusitadamente a função do também ator Giovanni Ribisi, reproduz algumas das matrizes cinéfilas puxadas pelo imaginário de Mollner. Nos grãos do 35mm, as imagens contemplam tanto a fluidez dos movimentos e rodopios quanto a dramaticidade da câmera lenta ou dos “freeze frames”, que são os planos congelados muito comuns nos anos 1970. Mais que fetichista, o que o filme não nega ser, “Desconhecidos” é pura emoção e impulso.