Em 'sobreviventes', brancos viram escravos de negros 20/04/2025

Em ‘Sobreviventes’, brancos viram escravos de negros – 20/04/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Dois homens estão numa ilhota deserta no meio do Atlântico, no século 19.

O preto João Salvador joga xadrez com o branco Fradique Mendes enquanto conversam sobre a escravatura e o tráfico negreiro, já proibido naquela fundura, até que um tenta voltar a falar do jogo.

“Te transformaste num oponente terrível”, diz o fidalgo interpretado pelo ator português Miguel Damião.

“Mas no termo são sempre as pretas que perdem, ainda não percebeu? Dá próxima, jogue com as brancas”, responde o mordomo escravizado, encarnado pelo brasílico Allex Miranda.

O diálogo se dá em “Sobreviventes”, que estreia na próxima quinta (24). É o último filme dirigido pelo cineasta português José Barahona, morto no ano pretérito.

O longa, em preto e branco, acompanha os sobreviventes do naufrágio de um navio negreiro, que ia de Angola ao Brasil. À medida que a institucionalidade do mundo “urbano” fica para trás, as hipocrisias vêm à tona e muitos dos papéis sociais são invertidos.

Os primeiros sobreviventes com quem o testemunha tem contato são todos brancos. Daí surge um preto, João.

Ao avistá-lo, os de pele alvor o amarram e atiram-lhe pedras e ofensas. João é salvo, porém, pela jovem branca até portanto calada. Daí ficamos sabendo da história de paixão impossível entre um mordomo preto com a moça branca rica, que revela já carregar uma ventre de vários meses de prenhez, fruto desse relacionamento.

Mais primeiro, o grupo encontra os agora ex-escravos que sobreviveram do naufrágio. Mais numerosos, eles demonstram mais sucesso na tarefa de sobreviver naquele sítio inóspito. Os brancos, portanto, viram escravos.

Os negros não querem ser salvos, cientes de o que os espera no Brasil é muito pior. Aquela é uma oportunidade de fugir da desgraça da escravatura. Para os brancos, é um sonho ruim do qual anseiam logo despertar.

“É porquê se eu adormecesse e estivesse dentro de um pesadelo. Eu tornei-me escrava dos meus escravos”, diz dona Emília, a personificação do conservadorismo e de toda a hipocrisia que o status quo carrega.

O plumitivo angolano José Eduardo Agualusa conta que só aceitou participar da feitura do roteiro depois uma conversa com Barahona. “Eu queria mesmo era dar a perspectiva africana. Portanto foi isso que eu tentei o tempo todo, mostrar que aquelas pessoas tinham uma vida, uma cultura”, diz o plumitivo. “Tentávamos fugir também a essa figura, a essa coisa do branco salvador. Que o Fradique poderia ser, não é?”

Em 2017, um filme também em preto e branco, que também mostrava o envolvimento de uma jovem branca com um jovem preto e também falava dos horrores da escravidão no século 19 gerou polêmica. “Vazante”, de Daniela Thomas, gerou uma celeuma ao ser exibido no Festival de Brasília, em setembro daquele ano. O filme foi criticado por não dar voz aos personagens negros e retratá-los de forma superficial.

“Sobreviventes” parece evitar seguir esse trajectória sinuoso que “Vazante” percorreu. “Não é mais um filme sobre pessoas escravizadas, africanos escravizados, porque, justamente, tenta dar um olhar a esses africanos”, diz Agualusa.

Em “Sobreviventes”, fica evidente o concepção de lugar de fala. Cada personagem demonstra ser fruto de suas experiências individual e coletiva, do lugar social que ocupam, sobretudo no que se refere a gênero e cor da pele.

A certa fundura, Vissolela, uma das líderes entre os ex-escravizados, anuncia que as mulheres da ilhota não vão mais trabalhar no campo “para nutrir as bocas preguiçosas dos homens”.

“É vergonhoso os homens trabalharem a terreno”, protesta um varão, evocando a tradição e, talvez, uma masculinidade frágil. Ele segue, mencionando que a ex-escravizada também já teve status de nobreza. “Lá [na África] podia ser princesa, mas cá é mulher porquê as outras”, ele diz.

Neste e em outros diálogos, porquê num jogo de xadrez retórico, um tenta desestabilizar os privilégios, dores e preconceitos do outro. Ser varão, mulher, preto, branco, livre, servo. Trabalhar na moradia grande, trabalhar no campo, não trabalhar. Falar com sotaque europeu, africano, brasílico —ou numa mistura de todos eles. Todos esses elementos são usados nos diálogos porquê ataques ou escudos pelos personagens.

Agualusa rechaça qualquer imputação de “identitário” que venha por ventura a ser lançada sobre o filme.

Segundo o plumitivo, a vocábulo “identitário” em Angola carrega um sentido muito dissemelhante do que se usa hoje no contexto de guerras culturais. “[Em Angola,] tem muito mais a ver com o sentido de reivindicação das culturas autóctones”, diz.

“Vou lhe manifestar, o filme é visto de uma maneira em Moçambique, em Angola, de outra maneira em Portugal e de outra maneira no Brasil. Mas não creio —e espero— que em nenhum desses lugares seja visto dessa forma [identitária]. Porque essa é uma forma limitada, limitante”, diz Agualusa.

“A mim interessa-me que o filme interrogue. Um bom filme, um bom romance, não dá respostas. Se souber colocar questões, já fez o seu papel. Quer manifestar, quem dá respostas é o Paulo Coelho. Nós não.”

Folha

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