Na semana passada, argumentei que Lula estava diante de uma escolha crucial entre abraçar ou rejeitar a “via bolsonariana”.
Nos últimos quatro anos, vimos que governar é fazer declarações e determinar que se vai falar só para os seus, mesmo que sejam uma minoria, gerar inimigos, provocar o outro lado, polemizar sempre, além de mostrar-se potente e viril, popular e querido ou vítima e vulnerável, conforme a conveniência.
Lula hesita, mas vai ter que optar. Finalmente, ou ele constrói pontes ou afia facas; ou investe em uma novidade maioria composta com quem não lhe fez juramentos de fidelidade e ainda o olha com suspeição ou aposta tudo nos seus crentes e se assume uma vez que líder de seita.
O recente incidente de radicalização dos lulistas deveria servir uma vez que uma prelecção sobre as consequências da adoção da abordagem bolsonariana.
Tudo tem início com uma enunciação do líder, uma vez que é de praxe. A partir desse momento, desencadeia-se uma lesma de conflitos no espaço público, caracterizada pela crescente intensidade de discussões, envolvendo críticas, defesas e contra-ataques em torno do que o presidente afirmou, até que não se fale de outra coisa.
Depois, os seguidores radicalizam, por conta própria, a asserção do líder, em um processo de polarização interna na própria bolha, já que grupos com crenças homogêneas tendem a recompensar aqueles mais radicais.
Quando Lula afirmou que o que está ocorrendo na Filete de Gaza tem um único precedente, o Imolação, a mensagem era que houve somente dois holocaustos na história: um, na Alemanha, outro em Israel. O primeiro passo depois disso foi gente correndo para negar que Lula tivesse feito a confrontação que efetivamente fez. Todos alegaram malícia na versão de quem disse que o presidente havia inverídico.
A base de pedestal mais dedicada a Lula, todavia, compreendeu com perspicuidade a sugestão feita por ele. Tanto é mal, no dia seguinte, muitos atacaram quem insistia na singularidade do Imolação. Um crítico assegurou-me que essa “premissa mágica” precisava ser dessacralizada, e citou três ou quatro intelectuais judeus que já o haviam feito.
Foi inútil esgrimir que, não sendo Lula judeu, talvez não lhe fossem concedidas as mesmas prerrogativas. Li que ao expressar que o Imolação é um evento sem precedentes, “na prática, estamos relativizando e diminuindo o peso de todos os outros genocídios registrados na história humana”. E que, considerando genocídio por genocídio, pelo menos o da Filete de Gaza está ocorrendo agora e pode ser interrompido.
Neste ponto, ainda persistia a crença de que Lula estava conduzindo um jogo altamente sofisticado no tabuleiro internacional, e que a tese dos dois Holocaustos tinha sido um movimento de rabino. Nesse estágio, não somente se aceitava que Lula havia feito a confrontação, mas também que ela era uma segmento precípuo de um jogo que mudaria a sorte dos palestinos.
No quarto dia, Lula tentou acalmar as águas, mas o fez à sua maneira. Poderia ter simplesmente dito “desculpem, estou publicando uma retificação que expressa o que realmente queria expressar”. Em vez disso, declarou tratar-se de reiteração, embora tenha desvanecido qualquer menção ao Imolação. Objetivamente, era uma retratação. Lula sabia que tinha ultrapassado os limites, mas ficou satisfeito porque sua enunciação agradou à sua base e gerou uma mobilização uma vez que havia muito não se via.
Com uma retratação que assumiu essas características, não é surpreendente que os lulistas não tenham captado a mensagem, pois no quinto dia já circulava entre eles o mais explícito negacionismo.
Um perfil lulista, seguido pela conta do presidente, questionava no ex-Twitter: “Quem, além de mim, não acredita que foram 6 milhões de mortos no Imolação?”. Em cinco dias, em suma, lulistas chegaram ao ponto para onde apontava a proa. Partiram da tese dos dois Holocaustos, sugerida no exposição de Lula, e foram em risco reta até chegar no mais rudimentar negacionismo.
Evidente, não foi Lula quem disse isso. Mas, se por anos estabelecemos uma consequência direta entre as atitudes dos bolsonaristas e as declarações e condutas de Bolsonaro e do seu círculo íntimo, é justo que se faça o mesmo com o atual presidente da República.
O que fala tem um peso enorme sobre os que o seguem. Ainda mais em um envolvente político em que o ódio borbulha, o radicalismo é recompensado e o pensamento definha porque a autoestima e depende de se sentir incondicionalmente segmento de um grupo.
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