Em Y'y, Amaro Freitas Inova No Piano Com Dominó E

Em Y’Y, Amaro Freitas inova no piano com dominó e fitas – 12/03/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Amaro Freitas passeava de embarcação pelo Amazonas quando, impressionado com o encontro do rio Preto com o rio Solimões, decidiu que queria reprofundar ali. O barqueiro não deixou. “Um peixe grande pode pegar teu pé, te impelir e nunca mais te achamos”, disse. “Vou te levar para um lugar onde dá.”

Já numa região mais tranquila do rio Preto, quando pulou na chuva, Freitas se deu conta de que não conseguiria depreender a extremidade do embarcação para se segurar. “Eu não sei nadar, bicho”, diz o pianista.

“Comecei a gritar desesperadamente por socorro. O barqueiro me chamou de louco e jogou uma corda. Depois, me levou para perto da margem. Quando me segurei num tronco para tentar transpor, o Helder Tavares, fotógrafo que estava no embarcação, disse: ‘Fica aí porque o sol está batendo de uma forma muito formosa no seu rosto.’”

A imagem é a que se vê na toga de “Y’Y”, novo disco do músico pernambucano, um dos instrumentistas brasileiros mais celebrados no mundo hoje.

São Paulo poderá vê-lo em ação nesta semana no Sesc 14 Bis e no Sesc Jundiaí, ao lado do também pianista Zé Manoel e com participação de Alaíde Costa, num show peculiar com músicas do Clube da Esquina. Já as apresentações do novo disco ficarão para abril, no Sesc Pompeia.

A foto da toga aponta metaforicamente para uma série de sentidos de “Y’Y” —a sotaque é “iêiê”. O disco nasce do encontro de Freitas com a cultura amazônica, indígena, em privado com a comunidade Sateré Mawé, com a qual conviveu por alguns dias e estabeleceu laços.

A diáspora negra também é uma dimensão fundamental do álbum, desde o íntimo da música do pianista ao seu diálogo com instrumentistas convidados uma vez que o inglês Shabaka Hutchings e o cubano Aniel Someillan.

O rosto de Freitas, submerso num rio amazônico batizado uma vez que Preto —com os cabelos, em suas próprias palavras, “uma vez que se fossem raízes”—, traduz o que se ouve no álbum. E o mergulho ousado reflete a surpresa das experiências do músico com o piano pronto, médio para a sonoridade que constrói.

“O piano pronto é uma técnica desenvolvida por John Cage, de botar objetos dentro do instrumento para modificar o som”, diz o artista. “Mas Cage usava parafuso, um material metálico. Eu comecei a testar pregador de varal, sementes amazônicas, peça de dominó, fitas.”

O pernambucano, porém, evitou tanger puramente experimental. “Eu sabor de melodia, simetria. E o Brasil tem muito ritmo. Só Pernambuco tem peneira, coco, cavalo-marinho, maracatu, frevo, baião, caboclinho. Queria esse calor tropical, essa umidade”.

Naná Vasconcelos e seu disco “Amazonas” foram referência fundamental para “Y’Y”. “Eu queria transformar as cordas do piano, em determinado momento, no berimbau de Naná”, afirma Freitas. Uma das músicas do disco, “Viva Naná”, é dedicada ao percussionista.

“Comecei a sonhar com Naná durante um período. É a primeira vez que boto minha voz num disco. E a forma uma vez que faço isso em ‘Viva Naná’ foi ele mesmo, em sonho, que me disse uma vez que fazer”, diz. Não à toa, o sonho é, para as culturas indígenas, um espaço de vivência, aprendizagem com quem está distante.

Depois de “Sangue Preto” (2016), “Rasif” (2018) e “Sankofa” (2021), “Y’Y” se inscreve numa tradição brasileira de abordar o soalho ascendente de nossa música a partir da perspectiva ocidental das vanguarda.

“Além de Naná, a própria obra do Villa-Lobos traz isso, com Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal. Acho que sou uma ininterrupção desse fluxo sonoro brasiliano”.

Ao longo das faixas de “Y’Y”, transbordam exemplos disso que Amaro fala. Sua mão tocando diretamente nas cordas do piano em “Uiara” para emular o esquina dos botos. Os tambores que brotam do piano pronto com pregadores em “Dança dos Martelos”. A melodia de “Asa Branca” que se cruza com o timbre africano da m’bira em “Sonho Antigo”.

Amaro faz questão, porém, de marcar sua posição uma vez que um músico contemporâneo. “Várias informações nos atravessam. Eu sabor de música pop, ouço Michael Jackson, Ludmilla, Pabllo Vittar”, diz o pianista. “É lindo o ascendente, mas a vida é uma ininterrupção. Busquei sonoridades eletrônicas no disco também, mas a partir do orgânico. Em ‘Uiara’, por exemplo, as fitas dentro do piano fazem ele tanger uma vez que um sintetizador, assim uma vez que em “Y’Y”, na qual uso peças de dominó”.

É mirando no calor do hoje que Amaro traz para o disco os instrumentistas convidados Shabaka Hutchings, Brandee Younger, Aniel Someillan, Jeff Parker e Hamid Drake —nomes de destaque no cenário mundial do jazz.

“É muito importante para mim estar tocando com nomes que são alguns dos principais músicos contemporâneos”, diz Amaro. “Mas principalmente por isso se dar pelo protagonismo de um brasiliano. O encontro de Milton Promanação com Wayne Shorter em “Native Dancer” é uma paragem incrível. Mas me incomoda ver o nome de Shorter gigante e o de Milton pequeno, sabe?”

Folha

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