Quando ofereceram “Emmanuelle” a Audrey Diwan, a cineasta francesa, dona de uma obra intensamente feminina, a rejeitou. O que a diretora de “O Caso”, que venceu o Leão de Ouro em Veneza ao pôr o monstruosidade em discussão, faria com a personagem lapidada para saciar o gosto sexual e os anseios de controle dos homens da dez de 1970?
Ela não parecia uma soma harmónico à filmografia ainda escassa da diretora. Mas Diwan ficou com a proposta na cabeça e, depois de ler o romance de Emmanuelle Arsan que deu início a tudo, decidiu concordar o projeto, desde que tivesse liberdade criativa suficiente para moldar a protagonista à sua maneira.
Assim, o novo “Emmanuelle”, que estreia agora na primeira edição do Festival de Cinema Europeu Imovision, com sessões espalhadas pelo país até o dia 30 deste mês, herdou exclusivamente o nome do “pornô soft” de 1974.
A trama ainda é pautada pelas aventuras sexuais da protagonista, mas seus prazeres deixaram de ser consequência do tédio de uma dona de lar e viraram revérbero de uma mulher com camadas psicológicas profundas e intrincadas. Independente e pragmática, a novidade Emmanuelle usa o sexo para mitigar a tensão de suas viagens de trabalho e para se aproximar de anônimos que despertam sua curiosidade.
“Eu só tinha visto dez minutos do filme original até logo e eles haviam sido o suficiente para entender que eu não era o público escopo”, diz Diwan, no Brasil para participar da exibição de seu “Emmanuelle” no festival.
Esta novidade trama abre com uma recriação da infame cena do “Mile High Club”, o clube daqueles que transam em aviões durante o voo. Emmanuelle troca sinais com um passageiro, que a segue pelo galeria da primeira classe até o banheiro. Com o quadril bem na diminuta pia, ela levanta o vestido e se deixa penetrar pelo incógnito, sem trocar uma única termo ou carícia.
Logo em seguida, a aeroplano pousa em Hong Kong –não mais em Bangkok, porquê no livro e no filme original–, e Emmanuelle faz check-in num luxuoso hotel. Sua tarefa é desenredar falhas na gestão e reportar tudo o que vê ao possuinte da rede. Sua objetividade, porém, é atrapalhada por um hóspede misterioso, que desperta sua imaginação fertilmente tórrida.
Esta não é uma releitura feminista, porém. Diwan tenta se distanciar do rótulo e diz que não há, necessariamente, ativismo numa trama sobre uma mulher com uma vida sexual agitada. Seu filme está preocupado com outras questões, que extrapolam questões de gênero, porquê solidão, desconexão e controle.
“Eu sou feminista, isso é secção de mim e já está no meu olhar, no meu ponto de vista. Não existia uma escolha a ser feita nesse sentido [ao escrever o roteiro do filme]”, diz a cineasta de 45 anos, que atualmente trabalha num longa sobre o despertar de uma jovem Lucrécia de Médici para um mundo de opressões.
Do livro “Emmanuelle”, Diwan resgatou o olhar feminino, em detrimento do voyeurismo masculino que enquadrou a protagonista entre 1974 e 1993, ao longo de 14 filmes –sem relatar as dezenas de paródias e versões não autorizadas–, cada um optando por uma ração mais ou menos explícita e inventiva de sexo.
Por isso, são significativas as cenas, no novo longa, em que a protagonista observa, burlando qualquer siso de privacidade, os hóspedes pelas câmeras do hotel. Saem os olhos da holandesa Sylvia Kristel e entram os da francesa Noémie Merlant, menos ingênuos mas também sedutores. No elenco estão ainda Naomi Watts e Will Sharpe.
Ao contrário da série original, que até videogame inspirou, o filme de Diwan não quer pupular. Cenas de onanismo, ejaculação e estupro filmadas com uma lente inegavelmente fetichista, típica dos filmes pornográficos, deram lugar a certa classe. Mas nem assim “Emmanuelle” conseguiu justificar sua existência, com críticos detonando a readaptação na Europa.
Entre o choque que o fez ser proibido e picotado em diversos países nos anos 1970 e os anseios de seriedade de um cinema mais moderno e sóbrio, “Emmanuelle” acabou se perdendo, disseram muitos. É inegável, porém, que a novidade versão ajuda a manter viva a figura quase mitológica da mulher que há meio século seduz espectadores mundo afora. Agora, com uma novidade abordagem.
“O cinema erótico não é construído só com sexo”, diz Diwan. “Às vezes, o erotismo está mais nas palavras, nos silêncios. Criamos tensão quando sabemos onde parar, para que a imaginação do público entre em cena. As pessoas hoje já viram de tudo e, na era da pós-pornografia, precisamos saber mais esconder do que mostrar.”