Por muito tempo, os povos indígenas foram retratados na literatura sob uma visão colonizadora e estereotipada, com características folclóricas e sempre descritos em terceira pessoa, porquê se não tivessem sua própria voz. Leste é o exemplo de Iracema, do plumitivo José de Alencar, obra literária do romantismo brasiliano.
Silenciada por muito tempo, as vozes dos povos indígenas, no entanto, sempre resistiram. “Tem gente que diz que temos que dar voz aos indígenas. Mas nós já temos muita voz, desde muito antes de 1500. Ela agora só precisa ser potencializada para além desses lugares”, defendeu a poeta, professora e editora Sony Ferseck, do povo Makuxi. “Mesmo que nossa língua seja proibida, a gente vai continuar resistindo através de outras línguas ou linguagens, sempre”, reforçou.
Em uma mesa promovida pelo Sesc-Senac dentro da programação da oitava edição da Sarau Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), em Salvador, Sony Ferseck e Edson Kayapó discutiram as literaturas indígenas e as poéticas de pertencimento, mostrando que a visão romantizada sobre os indígenas sempre foi secção de uma política colonialista e de extermínio dessas populações.
“José de Alencar fez um integral desserviço para os povos indígenas à medida que nos apresentou porquê pessoas dóceis ou domesticadas, sem qualquer resistência contra a força colonizadora”, disse o professor, pesquisador, ativista e plumitivo indígena Edson Kayapó. “O indígena de José de Alencar é uma pessoa que nutriz de paixão a violência colonizadora e, no final da narrativa, vemos a morte das personagens indígenas, porquê também morreu Moema na pintura [de Victor Meirelles]. Disseram que os indígenas seriam extintos por não conseguirem escoltar o progresso pátrio e que o último indígena viveria até os anos 2000. Mas nós somos, porquê já falou Raul Seixas, a ‘mosca na sopa’ dessas profecias falidas e desse projeto”, acrescentou.
De harmonia com Kayapó, os escritores indígenas não são unicamente a mosca na sopa cantada nos versos de Raul Seixas. Eles são também os porta-vozes dessas memórias que foram silenciadas. “Tenho pensado que nós, escritores indígenas, somos, de qualquer modo, porta-vozes de ancestralidades e de histórias e de memórias silenciadas pela sociedade brasileira e pelo Estado brasiliano”, afirmou. “Utilizo a própria vocábulo cristã para expressar que nós somos meio que discípulos das nossas ancestralidades. Nós estamos fazendo um trabalho que é trazer para a sociedade brasileira as histórias e memórias que são coletivas, histórias de ancestralidade que estão silenciadas na sociedade, nas universidades e nas escolas”.
A literatura indígena, definiu o plumitivo, é “uma fala coletiva e antigo” e também um instrumento de combate ao projeto de progresso “que tem promovido muita dor, muito genocídio, muito epistemicídio e que tem provocado a ruína da vida”. “A necropolítica não pode continuar”, defendeu Edson Kayapó.
O apagamento ainda presente
Embora a literatura brasileira tenha se ingénuo para as histórias e cosmologias testemunhadas pelos próprios indígenas, a política de apagamento ainda permanece muito presente. “Nossas vozes pouco repercutem porque as escolas e as instituições continuam mantendo o silêncio e a nossa literatura pouco repercute”, disse Kayapó.
A poeta Sony Ferseck cita um exemplo: há relutância das editoras de livros em publicarem essas histórias. Foi por isso que ela fundou a Wei, uma produtora independente de Roraima especializada em autores indígenas. “Cansei de mandar livros para as editoras e eles ficarem no esquecimento. Logo resolvi fundar a editora, com foco próprio em autores indígenas porque há muita dificuldade. Primeiro, a questão da intervalo. Roraima está muito distante da região sudeste, onde se encontra maior circulação em relação à literatura. Outra dificuldade é com relação às escritas de pessoas indígenas. E, por último, os mais velhos e mais antigos têm muita dificuldade com a língua portuguesa ou em compreender esse mercado [editorial]”, falou. “Mas, enfim, seguimos resistindo e a arte foi esse campo que escolhemos para dialogar com a sociedade e de trazer essas outras vozes entrelaçadas nas nossas”.
Para Edson Kayapó, uma das formas de combate a esse apagamento é não só pela garantia de direitos, porquê também por meio da instrução. “Temos que arregaçar as mangas para que a temática indígena e a literatura indígena por nós protagonizadas estejam nas salas de aulas”, defendeu.
Essa instrução, acrescentou ele, precisa ser “reencantada”, abrindo-se ao diálogo com outras culturas. “O Ailton Krenak diz que enquanto tiver indígenas para narrar suas cosmologias histórias e vivências, haverá possibilidade de adiarmos o termo do mundo porque os nossos povos fazem isso por primazia. Eu ainda diria que os escritos da nossa literatura são exatamente ensaios para delongar o termo do mundo e ao mesmo tempo diria que essa é uma forma de reencantar a ateneu. A ateneu quer estabelecer uma única verdade hegemônica e nós, povos indígenas, estamos falando sobre a urgência de pensamentos múltiplos estarem dialogando dentro das universidades”.
A Sarau Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô) é gratuita e acontece até o dia 11 de agosto. Mais informações sobre a Flipelô e sobre sua programação podem ser consultados no site do evento.
*A repórter e a fotógrafa viajaram a invitação do Instituto CCR, patrocinador da Flipelô.