As semanas seguintes às eleições costumam ser momentos de avaliações sobre perdas e ganhos na política institucional, além de oportunidade para compreender o estado atual da reciprocidade de forças no cenário político. Isso é originário, por fim, mandatos permanecem uma medida objetiva de força política. As urnas sempre transmitem mensagens importantes e cabe aos interessados decifrá-las com precisão para, logo, tomar as devidas providências.
Vamos por partes. Quero me concentrar hoje em um vista específico da mensagem que a esquerda recebeu nas eleições municipais: sua relação com uma secção significativa dos eleitores parece ter se perdido de vez.
Deixando de lado as habituais transferências de responsabilidade que esse setor político adora fazer —culpa das emendas parlamentares, da “normalização” das candidaturas aberrantes, do antipetismo promovido pela mídia, etc.—, unicamente os fanáticos resistem a concordar algumas obviedades reveladas pelas urnas: esta eleição confirma que, em 2022, quem se elegeu foi Lula, não a esquerda; apesar de seu tamanho, Lula já não é a sombra do “grande sufragista” de ciclos eleitorais passados; quando o PT se alia a outro partido de esquerda, porquê em São Paulo, não expande o eleitorado, mas o reduz; a relação da esquerda com os pobres azedou de vez; não convence mais ninguém uma retórica eleitoral baseada na sátira à “escol fascista”, na ironia depreciativa com o “pobre de direita”, nos apelos de “corram para salvar a democracia” e nas acusações identitárias de racismo, machismo e homo e transfobia.
Ou por outra, esgotou-se o valor explicativo das derrotas da esquerda e do progressão da extrema direita com base na suposição de que a maioria dos eleitores apresenta problemas morais (são conservadores ou fascistas) ou cognitivos (são ignorantes, manipulados por fake news ou enganados).
O PSDB e vários analistas do Sudeste passaram os primeiros 15 anos deste século rejeitando a teoria de que a secção do Brasil que preferia o PT aos tucanos tinha alguma razão válida para isso. Simplesmente não parecia razoável. Nesse período, proliferaram hipóteses de falhas morais ou cognitivas reproduzidas na mídia. Dizia-se que o IDH explicava tudo: quem come três refeições por dia vota racionalmente, quem tem déficit proteico age irracionalmente. Falava-se em diferença entre progressão e demora. Mainardi sustentou essa posição até há pouco tempo: “O Nordeste sempre foi retrógrado, sempre foi governista, sempre foi bovino, sempre foi subalterno em relação ao poder (…), região atrasada, pouco educada”.
Essas ideias foram ilustradas com mapas dos “dois Brasis”, separados pela risco de Capricórnio, com o Brasil temperado votando com razão e o tropical, por rafa, ignorância e mando. Finalmente, se Higienópolis tem um voto razoável, que diverge do voto de Xique-Xique ou Cabrobó, já sabemos para que lado pende a desrazão. Nunca entenderam zero das razões dos outros porque partiam do pressuposto de que os outros não tinham razão.
Agora, a esquerda adota a mesma postura de negar que qualquer voto seja tão racional quanto outro. Finalmente, se o pobre e o preto são objetos de tão transbordante paixão, que loucura é essa de não nos amar de volta? A não ser que se tenham perdido de vez, com a psique corrompida pelo fascismo, o coração levado pelo capitalismo, a mente possuída por pastores, pela desinformação e pelos algoritmos das plataformas.
Talvez a esquerda pudesse captar o recado das urnas e continuar nas explicações sobre sua novidade exigência se abandonasse as categorias que usa para justificar a repudiação dos seus ex-eleitores. Finalmente, conservadorismo não é um defeito moral nem uma postura antidemocrática; ninguém é fascista só por rejeitar progressistas e seus valores; e quem vota de maneira distinta unicamente tem razões diferentes, mas ainda assim são razões. Em vez de perguntas enviesadas, porquê “por que galinhas votam em raposas?” ou “que incongruência é essa, um ‘pobre de direita’?”, que só podem chegar a diagnósticos de patologias, a esquerda deveria simplesmente perguntar, olhos nos olhos, aos que não votam mais nela: “Você está melhor sem mim?”.
Quem sabe, se fossem seriamente escutados em vez de simplesmente desconsiderados porquê incapazes de discrição ou porquê neofascistas, esses eleitores não responderiam? Mas logo seria necessário concordar que grupos socialmente vulneráveis têm discrição, que fazem escolhas deliberadas, ponderando alternativas e considerando valores. Igualzinho a todo mundo.
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