A minha última proposta de mudança de atitude para uma esquerda que quiser se manter competitiva é muito prosaica: deixem de ser chatos, ninguém gosta de chatos, o rente estraga qualquer motivo.
Basta um pouco de bom tino. Suponhamos que você seja proprietário, sei lá, da Concessionária Brasil. Quem você contrataria para vender carros? Alguém simpático, capaz de identificar desejos que o comprador nem sabia ter e convertê-los em vendas, ou um rente? Na política, uma atividade que requer, por natureza, persuasão, convencimento e sedução, a mesma lógica se aplica.
O rente é insuportável, molesto, inconveniente. Quer estragar uma taxa? Tornar socialmente antipática a motivo mais transcendente? Quer aumentar o número dos seus adversários? Deixe por conta dos chatos e tudo isso estará guardado.
O rente despreza a simpatia porquê estratégia, o negócio dele é incomodar. A meta é transformar simpatizantes em neutros, neutros em adversários e adversários em inimigos.
Para não deixar incerteza, “rente” cá não tem o sentido de maçante, entediado, monótono, uma interpretação provável, mas de antipático, repugnante. “Monótono” pode até ser um predicado positivo nesses tempos de coisas bizarras, mas o rente a que me refiro acumula os defeitos de ser ativo, incômodo e repelente.
Foi Jô Soares quem melhor o descreveu: “Um rente nunca perde o seu tempo. Perde sempre o dos outros”. Foi ele quem lapidou a lei mor do rente: “Todo rente cutuca”. Cutuca, apalpa e acha sempre uma costura frouxa na sua camisa. Tudo isso a cinco centímetros da sua boca.
Toda extensão tem seu rente, mas o paradigma é o mesmo. Na religião, há aqueles sujeitos que batem à porta da sua vivenda às sete da manhã do domingo para indagar: “Olá, você teria um minuto para ouvir a termo?”. Cogita-se um “chaticídio”, evidente. O rente não tem tino, conveniência ou limites, não aceita ser ignorado.
Há várias categorias de chatos na esquerda e, aparentemente, estão se multiplicando nesses tempos em que os ativistas nem sequer tiveram um treinamento “presencial”. Formaram-se sozinhos, nas quebradas digitais. Tivessem pretérito pela convívio física, teriam aprendido a regra de ouro: o que você não teria coragem de manifestar a alguém a meio metro intervalo tampouco deveria ser dito online.
O rente mais geral na esquerda é o “problematizador”. Ele tem ideias curtas, mas opiniões compridas, que simplesmente precisa apresentar. Não importa se alguém se interessa por elas ou se a audiência está ali por outra pessoa. Antigamente, o tipo mais clássico de problematizador de esquerda era o “louco de palestra”, que já frequentou muita crônica —e muita conferência.
Eu o acho mais rente que maluco e tenho certeza que um rente aparecerá cá para denunciar que “saúde mental é coisa séria e que essa interpretação de maluco é politicamente incorreta”. Uma vez que a “chatofobia” ainda não foi criminalizada, tentarei por esse caminho.
“Gostaria de problematizar essa sua colocação” é uma forma de cutucar ou descobrir uma risco solta ou uma migalha na camisa do interlocutor, no caso, do palestrante, colunista ou responsável do post. “Acho que você está claro, mas senti um claro tom de misoginia” é frase típica do rente da hipercorreção política. “O que você está dizendo dos yanomamis procede, mas acho desrespeitoso não mencionar os ataques americanos aos houthis do Iêmen” é próprio do rente sommelier de indignações morais.
“Seu texto até estava indo muito, mas ‘la donna è mobile’ é de uma ária da ‘Traviata’ e não do ‘Rigoletto’” é do rente sabe-tudo, que em universal corrige inexacto. “É evidente que você não sabe do que está falando, sugiro que em vez de Habermas leia Bohumila”, diz o rente que passa bibliografia.
Mas o “Rente’s Award” de 2023 certamente vai para o beato da pureza política. Ele é o olheiro, “que a vida do vizinho e da vizinha pesquisa, escuta, espreita esquadrinha, para o levar à terreiro e ao terreiro”, a que se refere Gregório de Matos. O beato da pureza política se encarrega de fazer listas dos delitos de opinião que devem ser atribuídos a fulano e a sicrano para desmascará-los perpetuamente.
“Sabem essas jornalistas cujos textos vocês estão compartilhando? Uma apoiou a Lava Jato a outra chegou a manifestar que Sergio Moro era inteligente. Em 2014.” O “desmascarado” naturalmente se resume a isso, à “lapso” que o rente detectou e precisa repetidamente mostrar. O rente não faz novos amigos nem quer que ninguém os faça; ele precisa de inimigos, quanto mais, melhor.
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