Uma segmento do recinto interno entre os prédios do Conjunto Habitacional Santa Etelvina II foi cultivada com vasos de vegetação, com ramagem densa que lembra um quintal. O verdejante fica logo aquém da janela do apartamento térreo de Doné Kika de Bessem, que se mudou para a Cidade Tiradentes, extremo leste paulistano, no termo da dez de 1980.
Doné Kika vivia de aluguel, porquê grande segmento das pessoas negras que habitavam a região do Bixiga. “Eu morei na Rua Santo Antônio. Lá a gente morava e tinha um salão [de beleza] embaixo, na sala [da casa]. Morava com minha prima e meus filhos. Depois, nós resolvemos permanecer só com o salão, que estava tudo muito, estávamos conseguindo remunerar e fomos morar na Terreiro 14 Bis, muito frente à Vai-Vai [escola de samba]”, diz Doné Kika sobre o período em que morou na terreiro que fica na Avenida 9 de Julho.
Atualmente, o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai luta pela preservação da memória do bairro, posteriormente as obras da construção da Risca Laranja do Metrô terem derrubado a sede que a escola de samba ocupou durante 50 anos. Em 2022, um sítio arqueológico foi encontrado no lugar. No século 19, o região da Bela Vista abrigou o Quilombo Saracura, que margeava um riacho de mesmo nome. No início do século 20 essa segmento da cidade era conhecida porquê Pequena África.
Com base em documentos de licenciamento ambiental, a reportagem da Escritório Brasil mostrou que as regiões do Bixiga e da Liberdade, também com história ligada à população negra da capital paulista, foram os únicos pontos do traçado da Risca Laranja em que não foram feitos estudos arqueológicos prévios. A concessionária Move São Paulo, à idade responsável pelas obras, solicitou, em 2020, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Pátrio (Iphan) a dispensa de estudos nesses locais.
Para os ativistas, esse processo é mais uma tentativa de expulsar a população negra e extinguir a história dos bairros centrais paulistanos. Segundo dados da Rede Nossa São Paulo, 21,6% da população da Bela Vista é negra.
Extremo leste
A mudança da família de Kika para o bairro, a mais de 30 quilômetros do núcleo da cidade, ocorreu porquê segmento de uma política iniciada na dez de 1970. Em pouco mais de 20 anos, foram construídos pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) 42 milénio apartamentos e casas na região que, até logo, era uma dimensão rústico. Secção das terras, inclusive, pertencia a uma quinta que usou mão de obra escravizada.
Foram levadas para o bairro, que inicialmente não tinha nenhum tipo de infraestrutura, tanto pessoas que tinham dificuldades de remunerar aluguel nas partes mais centrais da cidade quanto famílias que eram removidas de favelas, ocupações e cortiços, muitos demolidos para dar espaço a projetos de dilatação e expansão de ruas e avenidas.
“No primórdio dos anos de 1980, a cidade Tiradentes tinha 8 milénio habitantes e, no termo dos anos 1990, estava ultrapassando os 200 milénio habitantes. Logo, a Cidade Tiradentes é considerada o maior fenômeno de prolongamento urbano dentro da cidade de São Paulo, que é o maior fenômeno de prolongamento urbano do mundo, segundo muitos autores”, explica o historiador e urbanista do Instituto Bixiga Edimilsom Peres Castilho, que tem uma tese de doutorado sobre a política habitacional do período da ditadura militar.
População negra
Os deslocamentos provocados pelas políticas urbanas no período afetaram mormente a população negra, porquê a que vivia no bairro do Bixiga. Isso fez com que a Cidade Tiradentes se tornasse um dos distritos com maior proporção de pessoas negras na capital paulista. Segundo levantamento da Rede Nossa São Paulo com base em dados de 2019, são pretos e pardos 56,1% dos moradores do bairro.
As investidas contra a população negra que vivia na região do Bixiga começam antes, com o projecto de avenidas radiais, que saem do núcleo para as extremidades da cidade, proposto na dez de 1920 e executado a partir da dez seguinte. “A Avenida 9 de Julho vai ser a primeira construída nessa proposta de geração de avenidas de fundo de vale [sobre rios e córregos canalizados]. Vai ser construída sob a justificativa de interligar, de reurbanizar o Vale da Saracura, mas interligar também o núcleo da cidade aos bairros da Companhia City [empresa que planejou diversos bairros paulistanos], que estavam sendo construídas do outro lado da Avenida Paulista”, detalha Castilho.
A Avenida 9 de Julho corta o bairro da Bela Vista, onde está inserido o Bixiga, que não é reconhecido nos mapas oficiais. A Avenida Paulista separa a Bela Vista dos bairros dos Jardins.
Nesse momento, segundo o historiador, a remoção das pessoas negras de uma segmento da cidade que começava a se valorizar já estava entre as intenções dos administradores municipais.
“O primeiro motivo de encanar o rio era evitar o contato da chuva com essa população que dependia da chuva. Tirando a chuva, você tira a população ribeirinha, tira as bênçãos da cultura negra, tira a pessoa que usava chuva para produzir os seus quitutes, tira a lavadeira, que lavava a roupa dos barões do moca na [Avenida] Paulista”, relaciona o historiador com base em declarações de autoridades da idade.
Ao longo do século 20, o bairro recebeu imigrantes portugueses e italianos, que também ajudaram a mudar gradualmente a elaboração populacional do bairro.
Despejos e demolições
Na dez de 1960, o projecto da prefeitura de São Paulo de dilatação de vias previa a extinção da Rua da Reunião e a demolição de diversos casarões na Rua Jandaia, segmento do Bixiga. As obras permitiram a relação da Avenida 23 de Maio com a Radial Leste. Com as desapropriações, diversos imóveis ficaram vazios e acabaram ocupados por famílias com dificuldades de remunerar por moradia na região medial.
“Quando eu era muito pequenininha, acho que com 1 ano, 2 anos [de idade] no sumo, eles vieram morar na Bela Vista. Logo meu pai tava trabalhando na Bela Vista, nessa rua mesmo, se não me ilusão, que é a Rua da Reunião”, conta a vereadora paulistana Elaine Mineiro (PSOL), que, na idade havia feito de chegar com a família, que veio de Guarulhos, na Grande São Paulo.
Assim, o pai de Elaine pôde gastar menos tempo nos deslocamentos diários. “Meu pai começou a trabalhar ali, era muito ruim para ele permanecer indo e voltando de Guarulhos todo dia”, conta. Em 1987, a prefeitura conseguiu a reintegração de posse dos imóveis e demoliu os casarões. Debaixo das construções foram descobertos os arcos que tinham sido construídos por imigrantes italianos e podem ser vistos atualmente na Terreiro dos Artesãos Calabreses.
Com a remoção, foram oferecidas opções de moradia para a família em Cidade Tiradentes, na zona leste, ou no Parque Santo Antônio, na zona sul da cidade.
“Só que eles escolheram sem ter a mínima teoria do que era a Cidade Tiradentes. Só falaram que era na zona leste. Depois que eles descobrem o que é a Cidade Tiradentes. Meu pai tinha que caminhar 40 minutos até conseguir pegar um ônibus e vir para o núcleo. A gente também. A primeira série, eu fiz andando 40 minutos para ir e 40 minutos para voltar todos os dias”, lembrou Elaine, ao falar sobre porquê a mudança impactou a vida da família.
Além enfrentar a intervalo e a falta de transporte, a família de Elaine foi morar em uma das casas padronizadas, que não tinha infraestrutura básica. “Quando a gente chega, não tem zero. Inclusive a gente buscava chuva numa bica. Depois começou a passar caminhão-pipa, que passava acho que duas vezes por semana”, lembra. Os novos moradores esperaram mais de um ano para ter chuva e luz em lar. “Asfalto demorou bastante. Pelo menos uns 5, 10 anos ali sem asfalto.”
Da escravidão ao cortiço
De contrato com Edimilsom Castilho, os projetos de reformulação viária na capital paulista coincidem com um período de dificuldades econômicas para as pessoas mais pobres. “Ocorre, logo, um aumento de dispêndio muito grande, que vai dificultar a permanência de muitas famílias no núcleo da cidade de São Paulo, nas regiões centrais”, enfatiza sobre os efeitos das políticas econômicas da ditadura.
Muitas pessoas que moravam no bairro estavam inscritas nos programas de habitação. Kika diz que foi chamada para morar em Cidade Tiradentes pelo cadastro que sua mãe tinha feito dez anos antes. “Minha mãe já tinha morrido. Não era mais a lar para que a gente fez a letreiro, era apartamento”, ressalta Kika, ao lembrar quando decidiu mudar para o imóvel de 42 metros quadrados em que vive até hoje, aos 75 anos.
“Vim morar cá com o sonho da lar própria”, diz sobre o sentimento que a levou a mudar para o extremo leste da cidade. “Eu cheguei cá era muito mato. Não tinha tanto apartamento, tanta lar porquê tem agora. Não tinha feira não, tinha hospital, não tinha panificação.”
A região apresentava muitas diferenças de infraestrutura em relação à segmento medial da capital paulista. “Quem passava cá eram os cavalos. Ainda tinha a vaca que andava no meio do caminho”, afirma, ao lembrar os problemas de transporte enfrentados pela família para ir trabalhar e estudar. Hoje ainda se veem cavalos ou galinhas em alguns terrenos do bairro.
A família de Kika havia chegado à região do Bixiga vinda de Campos do Jordão, no interno paulista. “Minha avó era uma religiosa de matriz africana. Ela era uma mulher nascida na escravidão”, diz Kika sobre a história da família. Apesar de legalmente libertada pela Lei do Ventre Livre, que tornava livres as crianças nascidas a partir de 1871, a avó de Kika não escapou da servidão. “Ela foi uma escrava do trabalho doméstico”, acrescenta a neta, que também se tornou líder religiosa.
A bisavó de Doné Kika veio escravizada, segundo ela, da região do Abomei, onde atualmente fica o Benim, na África. Por isso, ela segue o candomblé de tradição Jeje-Mahi. A família se instalou no lugar onde vivia a população remanescente do Quilombo Saracura. “Juntou-se um grupo que já era aquilombado com o êxodo dos irmãos pretos que eram escravizados nas fazendas”, explica sobre porquê a existência da população negra no lugar atraia pessoas pretas recém-chegadas à cidade.
Violência e reação pela cultura
A falta de infraestrutura e de laços comunitários acabou por propiciar o prolongamento da violência urbana em Cidade Tiradentes. De contrato com a Rede Nossa São Paulo, o região tem 16 homicídios para cada grupo de 100 milénio habitantes, enquanto a média na cidade é de 6,6 homicídios. A idade média ao morrer em Cidade Tiradentes é de 61 anos – na capital paulista, de 71 anos, chegando a 82 anos no Jardim Paulista, na zona oeste.
Quando Elaine tinha 5 anos, a família foi ‘cortada” por essa verdade. “Meu pai continuou trabalhando na mesma empresa. Ele foi para uma sarau de termo de ano da empresa e não voltou mais”, conta a vereadora. “A gente encontrou ele baleado no hospital em Itaquera, na zona leste, e não sabe o que aconteceu, não houve nenhum tipo de investigação.”
Para não permanecer exposta à violência das ruas, Elaine foi incentivada pela mãe a frequentar um espaço cultural mantido por uma entidade católica. Assim, ela acabou envolvida na cena artística do bairro, que floresceu em reação aos problemas estruturais. “Aos 15 anos, entrei no [Espaço Cultural] Honório Arce, um coletivo que naquela idade fazia o que hoje se labareda de sarau: a gente chamava artistas da região e também fazia discussões políticas.”
A região que, segundo Elaine, ficava fora do planta dos incentivos culturais públicos acabou desenvolvendo diversos grupos artísticos. “Um dos pontos que continuam é uma militância mais progressista e com questões novas, que fazem o debate racial de uma forma dissemelhante do que era discutido antes dentro dos partidos, que são os coletivos de cultura.”
Em 2004, segmento das edificações da quinta Santa Etelvina foi transformada em uma Lar de Hip-Hop, preservando a memória da região. Alguns imóveis da sede da quinta já haviam sido demolidos para construção de um terminal de ônibus.
Pertencimento
Reunindo três coletivos de teatro e cinco artistas independentes, a Cooperativa de Artistas de Cidade Tiradentes procura, desde 2015, disputar recursos de editais públicos e instituições culturais. Uma das integrantes das Filhas da Dita, um dos grupos que integram a cooperativa, Ellen Rio Branco ressalta que a cultura abre outras possibilidades para se relacionar com o bairro. “A questão cultural foi nos dando noção de pertencimento, de pertencer a qualquer lugar, a um território.”
“Você também tem aí uma disputa de imaginário, que vai ser o tempo inteiro explorado pelas mídias hegemônicas, que vão colocar a gente sempre nesse lugar do bairro periférico, carente porquê qualquer outro bairro do país com essas condições”, destaca a atriz, referindo-se às narrativas sobre a Cidade Tiradentes. “Mas a gente quer disputar esse espaço, [mostrar] que esse também é um bairro de muita produção artística, de muita resistência.”
“Um bairro onde as pessoas fecharam a rua para poder reivindicar o transporte público. Sequestraram o fiscal [da empresa de ônibus] e só devolveram quando firmaram uma risco de transporte”, lembra Ellen, ao recontar histórias marcantes das lutas sociais da região.
Apesar das melhorias conquistadas, viver no extremo da cidade é superar obstáculos cotidianos, enfatiza Ellen. “É quase irreal a intervalo. A gente está a 39 quilômetros do Marco Zero, da Terreiro da Sé. Pensando no transporte público, isso dá em torno de duas horas – às vezes, é o tempo de você chegar a outra cidade.” Desde 2011, existe um projeto para levar o monotrilho (trem suspenso) à Cidade Tiradentes.
Ellen acrescenta que, ao mesmo tempo, a contínua expansão do bairro sem planejamento traz de volta problemas do pretérito. “O que era mata, agora, por uma premência de moradia da população, vai se tornando cada vez mais ocupações sem nenhum respaldo do Estado. Tem espaços cá na Tiradentes em que essas pessoas ainda vivem o que foi a Cidade Tiradentes nos anos 1990, que era a questão da luz, que era uma violência extrema, que era uma série de ausências mesmo.
A atriz, que se define porquê “cria dos predinhos”, ou seja, moradora de um dos apartamentos dos conjuntos habitacionais, conta que é filha de mãe solteira e que deixou, ainda muito pequena, uma moradia alugada na Avenida Angélica, importante via que corta os valorizados bairros centrais de Higienópolis e da Santa Cecília.