O erotismo das gravuras de Alvim Corrêa está em frente à melancolia da tela “O Varão que Foi Atropelado”, de Antonio Dias. Já o rigor geométrico da série “Cantos”, de Cildo Meireles, divide espaço com a contenção estética das obras de Mira Schendel.
Embora tenham estilos e formas diversas, esses trabalhos guardam um gavinha em generalidade. Todos eles fazem secção do pilha de Luiz Buarque de Hollanda —fundador de uma das coleções mais importantes do país e nome fundamental para a renovação da arte brasileira.
O pilha que o legista formou ao longo de mais de três décadas vai do neoconcretismo de Lygia Clark e Hélio Oiticica às paisagens figurativas de Debret e Nicolas-Antoine Taunay, passando pelo surrealismo tropical de Chico da Silva e pela pop art abrasileirada de Carlos Vergara.
É uma coleção heterogênea que reflete não exclusivamente o ecletismo do colecionador, mas também a heterogeneidade que caracteriza a produção artística vernáculo. Toda essa profusão de cores e formas está ensejo ao público na mostra “Um Olhar Afetivo para a Arte Brasileira”, em edital na galeria Flexa, na zona sul carioca.
Com expografia da cineasta Daniela Thomas, a exposição reúne tapume de 150 obras presentes no pilha do colecionador, morto em 1999. A teoria do projeto é comemorar o legado dele, mas também refletir sobre as visões de país que emergem dos trabalhos.
Alguns deles retratam uma sociedade estilhaçada por força da violência e da arbitrariedade. É de Carlos Zilio uma das metáforas mais concisas e brutais sobre esse processo.
Em uma superfície branca, vemos um traço preto trinchar ao meio dois retângulos, criando uma fissura na obra. Na lateral do quadro, há duas legendas. A primeira diz “Espaço-Vida” e se refere às duas formas geométricas, já a segunda se relaciona ao traço e enuncia a termo “pavor”.
Em 1970, o artista levou três tiros e foi recluso por participar da guerrilha urbana contra a ditadura militar. Sob essa perspectiva, Zilio traduziu a atmosfera de inquietação que pairava sobre o país naqueles anos de chumbo. A exemplo de suas formas geométricas, uma cicatriz ensejo parecia trinchar o Brasil de cima a reles. Não à toa, essa tela faz secção do núcleo expositivo intitulado “Corpo partido”.
A obra “Husband and Wife”, de Antonio Dias, também joga luz sobre a violência, mas dessa vez ela é representada por um coração alvejado por duas balas. Aliás, o trabalho traz desenhos de bocas, pênis e vaginas.
“Não é exclusivamente uma referência à ditadura, mas também ao moralismo que atravessa o Brasil”, diz Felipe Scovino, curador da mostra e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federalista do Rio de Janeiro, a UFRJ. “A repressão nos costumes não aconteceu só no regime militar.”
A sentinela moral é tema de um dos trabalhos de Alvim Corrêa, artista que nasceu no século 19. Na obra, uma mulher nua está acorrentada a um tronco e exposta ao ódio coletivo no meio de uma rossio.
Enquanto a jovem mantém a cabeça baixa, entre a vergonha e a resignação, uma horda de senhoras está com o dedo em riste, em sinal de trote e julgamento. É porquê se a mulher encarnasse o libido e a turba raivosa materializasse a interdição.
Essa gravura está ao lado de trabalhos que celebram a liberdade em suas diferentes formas, num contraponto à caretice reinante no país.
Vemos, por exemplo, a emancipação feminina expressa em cores vibrantes num quadro de Rubens Gerchman. No trabalho, uma boca está prestes a tragar aquilo que pode ser tanto uma pílula anticoncepcional quanto um comprimido de LSD. Seja porquê for, a pintura revela um treino radical de autonomia e independência.
“Essa obra personifica um debate sobre o feminismo que estava acontecendo ali nos anos 1960”, afirma Scovino. “É a teoria não só da libido, mas também do livre vontade.”
A exaltação ao corpo feminino, por sua vez, está presente em “Eixo Exógeno”, obra em que Tunga esculpiu em madeira a silhueta de uma mulher, abdicando da mesocarpo em obséquio da forma.
Além das obras de arte, a exposição traz documentos que narram o trabalho de Buarque de Hollanda porquê galerista. Em 1973, ele criou ao lado do sócio Paulo Bittencourt uma galeria que levava o nome dos dois. O projeto durou exclusivamente cinco anos, mas suas reverberações podem ser sentidas até hoje no mercado.
O colecionador renovou o setor ao apostar em artistas experimentais. Isso num momento em que os olhos dos compradores se voltavam muito mais para a segurança da arte figurativa.
“Havia um conservadorismo, principalmente sobre essa geração de artistas”, diz Scovino, referindo-se a nomes porquê Cildo Meireles, Antonio Dias e Waltercio Caldas. Embora já tivessem participado de exposições importantes no Brasil e no exterior, eles encontravam dificuldade em circuitos mais comerciais.
Tanto que a primeira mostra individual de Cildo em uma galeria aconteceu em 1975, no espaço criado por Buarque de Hollanda. “O louco é que aquela exposição, e o Luiz sabia disso, não tinha chance de vender porra nenhuma”, diz o artista, em um documentário sobre o colecionador. “É preciso respeitar uma galeria que partilha dessa porralouquice.”
“Ele era meio Robin Hood”, acrescenta Carlos Zilio. “Roubava dos ricos para dar aos pobres, ou seja, vendia século 19 para sustentar aquele quadrilha de marginal.”
Hélio Oiticica foi outro artista que o colecionador apoiou. Além de colega, foi comprador de suas obras quando elas pouco vendiam. Adquiriu, por exemplo, os célebres “Metaesquemas”, um dos destaques da exposição. Essa série antecipou as investigações tridimensionais que marcariam a temporada relevo espacial de Oiticica.
“É uma exposição rica por trazer os trabalhos iniciais desses artistas que, posteriormente, ajudaram a grafar a história da arte”, diz Scovino, o curador da mostra. A mesma sala expositiva dos “Metaesquemas” abriga também os planos em superfícies moduladas de Lygia Clark.
Nesses trabalhos, ela usou o compensado porquê suporte, cortando a madeira com o auxílio de um bisturi para produzir módulos geométricos.
Vem daí o nome das obras, embrião da icônica série “Bichos” —esculturas feitas em recortes de metal ligados por dobradiças. É porquê se as formas das superfícies moduladas tivessem se libertado do projecto e adquirido tridimensionalidade.
Buarque de Hollanda também mantinha uma relação de amizade com a artista. Para o colecionador, arte e afeto eram indissociáveis.
“E essa afetividade extrapolava o fazer artístico. Estava presente também na convívio e na solidariedade”, diz Luisa Duarte, diretora artística da galeria Flexa.
Para a curadora, a exposição é uma forma de preservar um capítulo importante do rotação artístico vernáculo. “Luiz contribuiu ativamente na produção de trabalhos arriscados e experimentais. Ele se tornou uma figura importante num momento em que tudo era muito frágil e incipiente.”