Um guarda-roupa que pertenceu ao inventor Alberto Santos Dumont (1873-1932). Uma leito e uma marquesa que foram usadas por Domitila de Castro Quina e Mello, a Marquesa de Santos (1797–1867). Cadeiras criadas pelos arquitetos Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) e Lina Bo Bardi (1914-1992). Estes são exclusivamente alguns dos objetos de mobiliário que estão expostos temporariamente no Museu Paulista, mais sabido por Museu do Ipiranga, a partir de desta terça-feira (11), na capital paulista.
Chamada de Sentar, Vigilar, Dormir: Museu da Mansão Brasileira e Museu Paulista em diálogo, a novidade exposição revela porquê objetos de uso cotidiano documentam as diferentes formas de morar da sociedade brasileira, sendo também evidências da imensa variedade cultural e social do país, envolvendo as heranças indígena, portuguesa, afro-brasileira e de suas variadas migrações e imigrações. Esse mobiliário também dá testemunho tanto da vida de seus usuários quanto das pessoas que os produziram e ajudam a narrar segmento da história desse país.
“Essa exposição foi organizada pensando-se nas ações humanas, na vivência e nas práticas cotidianas da população em seus ambientes domésticos. Portanto a gente pensa nesses artefatos na medida em que eles são utilizados e em que eles são significados por nós porque, por fim, todos sentamos, todos guardamos e todos dormimos”, disse Maria Aparecida de Menezes Borrego, uma das curadoras da mostra.
“É uma exposição para pensarmos, de vestuário, porquê esses artefatos agem na nossa vida cotidiana e pensarmos também, porquê museu de história que somos, que essas atividades, por mais banais e naturalizadas que pareçam, dependem de um tirocínio e têm uma historicidade”, ressaltou à Filial Brasil.
A coleção reúne 164 peças entre bancos, cadeiras, sofás, caixas, cômodas, escrivaninhas, guarda-roupas, redes, esteiras e camas – alguns com mais de 400 anos de existência – e foi dividida em três núcleos básicos, que mostram porquê necessidades básicas porquê sentar, vigilar e dormir foram atendidas por meio desses objetos ao longo do tempo. A curadoria é dos docentes do Museu Paulista, Paulo César Garcez Marins e Maria Aparecida de Menezes Borrego, e do convidado Giancarlo Latorraca, arquiteto e ex-diretor técnico do Museu da Mansão Brasileira.
Módulos
O primeiro núcleo da mostra é o Sentar, que apresenta móveis, cadeiras, poltronas e sofás, entre outras peças de mobiliário. “São muitas histórias que a gente conta cá. E quando estamos pensando no Sentar, esse é módulo que a gente tem mais peças porque a cadeira é um módulo por primazia dos ambientes domésticos”, explicou Maria Aparecida de Menezes Borrego.
Mas no início da colonização brasileira até por volta de 1850, contou a curadora, as cadeiras não eram objetos muito utilizados dentro das casas brasileiras. “As casas paulistas eram pouco mobiliadas porque o convívio social se dava fora dos muros das casas. Essas sociabilidades aconteciam nas ruas, nas igrejas, nas festas religiosas e a morada era um espaço para abrigo. O que esses móveis cá contam? Que a gente tem, na verdade, poucas peças de madeira dentro das casas”.
Isso começa a mudar a partir do século XIX. “Ao contrário do que a historiografia disse há muito tempo, a escassez dos móveis não indica que as casas eram pobres, mas que elas eram um espaço exclusivamente de abrigo. A partir do século XIX, são os móveis de assento e de sentar que vão nos mostrar que essa morada começa a receber visitas. Sofás, canapés e marquesas passam a indicar que tem mais pessoas que sentam naqueles lugares e que está havendo uma interiorização das sociabilidades”, disse ela.
Outra história que pode ser contada por meio desses “objetos de sentar” é que as cadeiras eram utilizadas inicialmente no Brasil exclusivamente por homens ou pelos proprietários da morada. As mulheres, até logo, continuavam se sentando no soalho. “É de vestuário no século XIX que a gente passa a ter os canapés e que as mulheres passam a se sentar nas marquesas e nos canapés”, contou.
É também neste módulo que se apresentam objetos de uso para o trabalho tais porquê uma cadeira de fígaro e um vasqueiro réplica de cadeira de dentista portátil. “Temos que pensar o traste com uma extensão do próprio corpo humano. Ele é uma prótese do que nós temos para realizar muito o nosso trabalho. Portanto não pode ser qualquer cadeira de fígaro ou qualquer cadeira de costura: elas devem ser apropriadas justamente para um trabalho mais eficiente, que consuma menos vigor do próprio corpo humano”, explicou a curadora.
Vigilar
Já o segundo núcleo pensa na temática do Vigilar. Cá são expostos móveis que foram utilizados para armazenar roupas, cartas, documentos e valores, porquê caixas, canastras, cofres, cômodas, armários, guarda-roupas, contadores, papeleiras e escrivaninhas. Eles revelam, por um lado, os modos de dar segurança ao que se quer preservar ou transportar e, por outro, a proteção dos testemunhos da nossa intimidade e das roupas e acessórios que usamos.
De início, o que vemos são caixas que serviam para se vigilar de tudo. Depois esses móveis começam a ter pés, separações e gavetas. “A partir do momento que as caixas ganham pés e perdem as argolas [que permitiam com que fossem transportadas], a gente já vê que são caixas para interiores domésticos de populações mais sedimentadas, porque aí você não vai mais carregar a caixa de um lugar para o outro”, explicou a curadora. “Quando surgem os guarda-roupas, a gente passa a ter uma outra forma de guarda, individualizando cada uma das suas peças de indumentária. E as gavetas cumprem esse papel de classificação dos seus pertences”.
Dormir
O último módulo da exposição é o Dormir, que evidencia diversas formas de deitar e resfolgar que foram praticadas no Brasil ao longo de séculos, desde as redes de origem indígena até as camas de solteiro. “Até o século XIX nós vamos ter essa preponderância das redes; mas em algumas casas de vestuário muito ricas, nós vamos ter os leitos”, contou a curadora.
É nesse espaço que também se pode ver, com maior perspicuidade, a diferença entre as primeiras camas produzidas de forma mais artesanal e o ingresso das camas feitas em série, já no processo de industrialização. Uma dessas camas seriadas é a chamada leito patente, que foi desenhada no primórdio do século 20 para responder às necessidades e exigências sanitárias. “Esta é uma leito que foi feita primeiramente para uma clínica médica e que, depois, passa a fazer segmento do envolvente doméstico, se popularizando. É a partir disso que as camadas médias e populares vão iniciar a dormir em camas a partir do século XX”, falou.
Diálogo
As peças selecionadas pela curadoria propõem um diálogo entre os acervos do Museu da Mansão Brasileira, criado para registrar e expor as diferentes formas de morar, e do Museu Paulista, voltado ao estudo de objetos e imagens que documentam a sociedade brasileira.
“O Museu Paulista foi fundado em 1893 e inaugurado em 1895 e é um museu que se presta a narrar a história do país a partir de São Paulo. Portanto cá nós vamos ter muitos dos móveis doados pela escol paulista nesse primórdio do século XX. Já o Museu da Mansão Brasileira foi fundado em 1975 e procura também, a partir da cultura material, falar dos ambientes domésticos da Mansão Brasileira. No Museu Paulista temos uma maior quantidade de móveis dos séculos 17, 18 e 19 e dessas elites, ao passo que o Museu da Mansão Brasileira tem esse seu ror formado por móveis voltados mais às camadas médias e populares do século 20. Daí essa complementariedade”, disse a curadora.
Doações
Grande segmento do mobiliário do ror dessa exposição foi doado pela sociedade, demonstrando que os museus, para além de serem lugares de guarda, preservação ou estudo dessas coleções, são também locais em que a sociedade deposita expectativas de sua preservação. “A própria sociedade deposita nos museus a expectativa da perenidade das suas histórias e das suas famílias. Portanto, por muito ou por mal, é a própria sociedade que constrói esse Museu Paulista que temos hoje”, disse a curadora.
E por se tratarem de doações, esse vasto ror acaba, de alguma forma, refletindo pouca variedade. “É justamente por essa dificuldade de doação que nós temos poucos móveis ligados aos diversos segmentos sociais. É importante expressar que temos cá outras formas de se sentar, de vigilar e de dormir indígena, mas temos cá uma carência em termos de mobiliário da população negra. Mas embora não apareça, a mão de obra negra vai estar presente nestes móveis. Muitos desses móveis tem dificuldade de autoria. O marceneiro ou o marceneiro não deixavam registradas as suas assinaturas no traste. Nós não sabemos quem fez [esses móveis] mas, pela documentação tanto do Período Colonial quanto do Poderio, sabemos porquê os escravizados foram se especializando nesses ofícios. Portanto, provavelmente, todos esses móveis até o século XIX têm a mão negra na sua confecção”, contou a curadora.
A mostra tem ingressão gratuita e é toda alcançável, composta por objetos táteis e recursos multissensoriais, que permitem ao visitante sentir alguns dos objetos. Outrossim, no dia 29 de junho, os curadores vão se reunir no auditório do museu para uma apresentação sobre os móveis expostos.
A exposição ficará em edital até o dia 29 de setembro. Mais informações sobre ela podem ser obtidas no site