É um objecto sem termo. Experimente perguntar a alguém para que serve a arte. As respostas serão invariavelmente vagas, vacilantes, tentando se ladear de boas intenções —expressar emoções, ajudar a suportar o cotidiano, compreender melhor o ser humano e a sociedade.
Nem a lucidez sintético vai entregar uma resposta objetiva. Se sentenciar misturar função e arte em uma mesma frase, convém preparar-se para ouvir platitudes. O questionamento é velho e já opôs pensadores de tantas épocas: uns falam em venustidade, outro tanto em política.
A obra que estreou na MITsp, Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, na última semana e segue em edital até abril no teatro do Sesc Consolação, a novidade peça do diretor Felipe Hirsch e seu grupo Ultralíricos retorna a esse velho e complicado dilema: arte contra utilidade.
Mas em “Agora Tudo Era Tão Velho: Fantasmagoria 4” a resposta é muito contundente: duas horas de cenas, desenhadas com o esmero técnico característico do diretor, para tutelar que a arte não serve para rigorosamente zero.
Pode ser um manobra interessante tensionar o espetáculo o restante da programação apresentada na MITsp. A seleção de peças deste ano mostra-se engajada com o pensamento decolonial, fluente que problematiza a lógica colonialista para dar a voz a povos antes oprimidos, uma vez que negros e indígenas.
“Fantasmagoria 4” olha para o lado avesso. Desloca o debate. Investe em muita verborragia para mensagem nenhuma —e essa frase não traz encaixado um pensamento negativo.
“Se no primeiro ato, você colocar um rifle na parede, ele deve ser usado até o termo do último ato”, pregava Anton Tchekhov, ao tutelar uma noção de economia dentro de uma história. Em resumo, o dramaturgo russo acreditava que tudo que não for útil à narrativa, deve transpor.
Os manuais de roteiro de Hollywood e os cursos de escrita criativa ainda hoje bebem dessa teoria e o testemunha já aprendeu uma vez que as coisas funcionam. Quem tossir em cena, morrerá de tuberculose; quando gagueja, o personagem está mentindo; se uma arma surgir, ela será disparada.
Os dramaturgistas Caetano W. Galindo e Guilherme Gontijo Flores brincam com essa “regra de ouro” na peça. O revólver entra e sai do palco à exaustão, sem que o tiro aconteça.
Felipe Hirsch tem um trabalho consistente, mas nem um pouco monótono. Em 2008, o diretor trilhava um caminho curioso. Deixava a riqueza excessiva de “Avenida Dropsie” (2005) e “A Vida É Enxurrada de Som e Fúria” (2000) para inventar uma delicada peça de câmara chamada “Não Sobre o Paixão”.
Nela, explorava a correspondência amorosa entre dois formalistas russos, Elsa Triolet e Victor Shklovsky, e costurava um texto que extravasava a conjugalidade para deter-se sobre a linguagem. À dulcinéia, Shklovsky escrevia: “Todas as palavras boas estão pálidas de exaustão: flores, lua, olhos, lábios. Eu gostaria de ortografar uma vez que se a literatura nunca tivesse existido”.
Esse cansaço das palavras, essa sensação de que tudo já foi dito, ressoa agora, passados mais de 15 anos, em “Fantasmagoria 4”. A obra traz um elenco estelar, alguns dos melhores intérpretes de teatro dessa geração, e lança-o a uma bricolagem disparatada de textos e referências artísticas: Gershwin, Brahms, Leminski, Andrea Tonacci, Hitchcock.
Para embaralhar essa geleia universal, ele convoca as reflexões de Ferdinand Saussure —suíço que lançou as bases para o estruturalismo que pautou o século 20 e ainda organiza muito do nosso pensamento nas ciências humanas.
Roberta Estrela D’Alvor vem falar dos conceitos de signo, significante e significado. Lá na frente, Danilo Grangheia recupera os mesmos argumentos só que usando palavras trocadas. Parece enfastiado, e é mesmo. Mas resulta imprevistamente bastante engraçado.
Não é todo mundo que concorda. Na plateia do Sesc Consolação, muita gente se cansou do jogo de repetições e chistes; simplesmente levantou e foi embora antes do termo. Para quem persistiu, as desistências dos outros espectadores acabaram quase fazendo segmento da dramaturgia.
Nelson Rodrigues, que era um varão de frases de efeito, dizia ansiar que suas peças desagradassem, “que fossem fétidas, pestilentas, capazes de produzir o tifo e a malária na plateia.” A geração do Ultralíricos quer distanciar a arte de um olhadela utilitária, de uma lógica de produtividade, quer entediar. E o tédio, no século 21, não é para os fracos.