Favela Bairro, 30 Anos: Legado Do Programa Desaparece Aos Poucos

Favela-Bairro, 30 anos: legado do programa desaparece aos poucos

Brasil

Os caminhos que cruzam o Morro do Andaraí, na zona setentrião do Rio, têm sinais de deterioração e de desarrimo. Em determinado ponto, o pavimento está afundando. No argola viário, que percorre as áreas mais altas, quando é dia de chuva e tudo alaga melhor nem tentar passar de coche.

A comunidade foi a primeira a ter um projecto de urbanização em 1994, quando surgiu o programa Favela-Bairro. Trinta anos depois, as melhorias de infraestrutura, habitação e serviços sociais são lembranças distantes de um vasqueiro momento de mediação do Poder Público. Sem manutenção e novos investimentos, os problemas se multiplicam no ritmo de prolongamento da população.

“O projecto piloto de 94 foi desenhado para uma comunidade que tinha muro de 5 milénio pessoas. No último levantamento, de 2010, já eram 30 milénio. Agora, deve ter muito mais que isso, uns 40 ou 50 milénio. Tudo ficou completamente defasado. As vias estão sobrecarregadas, as partes de esgoto e pluvial nunca foram modernizadas. Zero teve manutenção e, com esse prolongamento desordenado da comunidade, tudo foi só piorando”, analisa Fernando Pinto, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Morro do Andaraí (Amama).

Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – O Presidente da Associaão de Moradores e Amigos do Morro do Andaraí, Fernando Pinto, fala sobre o programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – O Presidente da Associaão de Moradores e Amigos do Morro do Andaraí, Fernando Pinto, fala sobre o programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro – O presidente da Associação de Moradores e Amigos do Morro do Andaraí, Fernando Pinto – Foto Fernando Frazão/Escritório Brasil

A cozinheira Maria Elisabete conta que, em meio à situação precária, é o espírito de coletividade que ajuda a comunidade a se manter de pé.

“O maior problema cá é a falta de chuva. É a reclamação que mais ouço. Felizmente, tenho a sorte de morar em um lugar onde quase nunca falta. E as pessoas vão tentando se ajudar. Eu ofereço a minha mansão para o pessoal tomar banho e resolver outras coisas. Sem falar nas questões de esgoto. Quando cai qualquer chuvinha, os ralos entopem”, disse Elisabete.

Ela mora ao lado da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O prédio, que hoje parece uma fortaleza cravada na secção baixa da favela, já foi um Núcleo Municipal de Assistência Integrada (Cemasi), com quadra esportiva onde as crianças passavam o dia jogando globo. Desde 2010, esse envolvente foi substituído por viaturas, homens fardados e fuzis. Além de perder um espaço de assistência social e lazer, moradores não tiveram cumprida a tão prometida melhoria na segurança. Há poucos metros dali, os traficantes circulam tranquilamente.

Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – A moradora do Morro do Andaraí Maria Elizabeth fala sobre o programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – A moradora do Morro do Andaraí Maria Elizabeth fala sobre o programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro – A moradora do Morro do Andaraí Maria Elizabeth fala sobre o programa Favela Bairro – Foto Fernando Frazão/Escritório Brasil

“O Estado entrou só com armamento e policiamento. Isso não veio confederado de outras ações que seriam muito mais importantes, uma vez que ensino, saúde, lazer, esporte. Essa é uma reclamação que a gente ouve muito dos moradores”, disse Fernando Pinto.

Programa Favela-Bairro

O Favela-Bairro trazia no próprio nome a promessa de transformação do status das favelas em bairros e a integração delas com as regiões vizinhas. No tino generalidade, favela normalmente foi vista uma vez que lugar de desordem, informalidade e ilegalidade.

“Sempre pareceu que era muito interessante para o Poder Público manter as favelas numa espécie de lugar indeterminado. Entre o legítimo e o proibido. Entre o tolerado e o que deve ser expulso. Isso acontecia para que as pessoas ficassem numa situação de vulnerabilidade, que favorecesse práticas clientelistas, vindas de um parlamentar ou de determinado grupo político que adotava certa favela”, analisa Tarcyla Fidalgo, doutora em planejamento urbano e regional e pesquisadora do Observatório das Metrópoles.

Durante boa secção do século 20, o Poder Público olhava para as favelas uma vez que problemas a serem erradicados. A termo de ordem era a remoção. Um exemplo é o Código de Obra da Cidade do Rio de Janeiro, de 1937, que proíbe a construção de novas moradias, melhorias nas que já existiam e, progressivamente, a eliminação delas.

Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Reprodução do projeto piloto do programa Favela Bairro, que completa 30 anos, no Morro do Andaraí. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Reprodução do projeto piloto do programa Favela Bairro, que completa 30 anos, no Morro do Andaraí. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro – Reprodução do projeto piloto do programa Favela Bairro, que completa 30 anos – Foto Fernando Frazão/Escritório Brasil

Também é sabido por essa mentalidade o governo de Carlos Lacerda (1960-1965), que adotou política poderoso de remoção de favelas, principalmente na zona sul. E a ditadura militar, com destaque para o período de maior repressão (1968-1973), quando muro de 60 favelas e 100 milénio habitantes foram removidos, principalmente de áreas mais nobres, de interesse do setor imobiliário.

A situação começa a mudar com a chegada do período democrático. São marcos desse período o Projeto Mutirão (1981-1989), com a retomada de intervenções urbanísticas em favelas, e o Projecto Diretor do Rio de Janeiro de 1992, que previa políticas públicas nas favelas e a inclusão delas nos mapas e cadastros da cidade.

Em 1993, a gestão municipal de César Maia cria o Grupo Executivo de Assentamentos Populares (Geap), para concentrar a política habitacional. Entre os programas previstos, está o Favela-Bairro. No mesmo ano, surge a Secretaria de Habitação. A teoria começou a trespassar oficialmente do papel no dia 28 de março de 1994, quando é destapado oficialmente o edital para escolha de arquitetos e projetos, organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil do Rio de Janeiro (IAB-RJ).

“Favela-bairro é o primeiro grande programa de urbanização de favelas que a gente tem cá no Rio de Janeiro. Tem uma relevância fundamental no sentido de marcar a possibilidade de que o Estado reconheça um território e possa agir para melhorá-lo. Ele rompe um pouco com a visão da favela uma vez que um tanto a ser combatido, a ser exterminado, uma vez que um lugar que não tem salvação”, diz Tarcyla.

Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Morro do Andaraí, atendido pelo programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Morro do Andaraí, atendido pelo programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro – Morro do Andaraí, atendido pelo programa Favela Bairro, que completa 30 anos – Foto Fernando Frazão/Escritório Brasil

Inicialmente, 16 favelas foram contempladas na primeira temporada do programa. Foram priorizadas as de médio porte, na era, caracterizadas assim por ter entre 500 e 2.500 domicílios. As obras da prefeitura começaram com recursos próprios em 1995. No termo do mesmo ano, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) assina um convênio com a prefeitura. O totalidade combinado de recursos aplicados nas duas fases do programa foi de US$ 600 milhões.

Calcula-se que, no totalidade, mais de 150 comunidades foram contempladas por qualquer tipo de obra nas duas fases. O protótipo foi vendido pelo mundo para ser adotado em regiões periféricas e inspirou ações semelhantes em países da América do Sul.

“Os serviços prestados durante esse período, sem nenhum excesso, revolucionaram a vida dentro dessas comunidades. As pessoas passaram a ter um padrão superior. Vários estudos acadêmicos foram encomendados que atestaram isso. Os resultados sociais e econômicos foram enormes”, afirma Sérgio Magalhães, que foi secretário municipal de Habitação do Rio entre 1993 e 2000 e responsável pelo programa durante a maior secção da existência dele.

“As favelas não tinham recolhimento de lixo, limpeza das águas fluviais, creches, serviços de saúde. Passaram a ter escritórios da prefeitura em todas elas, além de centros esportivos, iluminação pública, uma série de serviços de interesse social que valorizaram a cidadania. Tudo era muito precário antes do programa nas favelas”, complementa Sérgio.

O programa terminou em 2008 e, apesar do reconhecimento de que trouxe avanços importantes, não está livre de críticas.

Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Mural em homenagem à líder comunitária Jurema Batista no Morro do Andaraí, atendido pelo programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Mural em homenagem à líder comunitária Jurema Batista no Morro do Andaraí, atendido pelo programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro – Mural em homenagem à líder comunitária Jurema Batista no Morro do Andaraí – Foto Fernando Frazão/Escritório Brasil

“Os moradores historicamente construíram soluções muito criativas e inventivas para solucionar problemas uma vez que falta de chuva, enchente, pavimentação, drenagem. O programa de urbanização partiu de uma visão técnica construída em gabinete. Uma perspectiva de que a favela precisava se tornar a cidade formal, um bairro igual aos outros. Foram ignoradas soluções desenvolvidas no próprio território, e aplicados modelos que não necessariamente se adequavam àquela veras”, diz Tarcyla Fidaldo.

Outras políticas de urbanização

Em 2007, o governo federalista criou o Programa de Aceleração de Prolongamento (PAC) para investir na urbanização de favelas. Foram quase R$ 3 bilhões investidos em 30 favelas ou complexos. Críticos do projeto apontam que ele priorizou “obras faraônicas” pouco efetivas, não combatendo os problemas reais de infraestrutura. O teleférico do Multíplice do Teutónico é citado uma vez que exemplo.

Em 2010, a gestão do prefeito Eduardo Paes criou o Morar Carioca, considerado prolongação do Favela-Bairro. A meta era urbanizar todas as favelas até 2020, o que não aconteceu. Por outro lado, conforme pesquisa de Lucas Faulhaber e Lena Azevedo no livro SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico, pelo menos 60 milénio pessoas foram removidas de comunidades. O caso mais famoso é o da Vila Autódromo. Em 2017, o logo prefeito Marcelo Crivella chegou a anunciar a volta do programa Favela-Bairro, mas o projeto não foi adiante.

“Houve um esvaziamento da política habitacional e não houve manutenção das obras que foram feitas nas favelas. As que tinham sido contempladas no programa passaram a perder qualidade de vida. Sem investimentos, os indicadores sociais e de segurança nas comunidades pioraram bastante”, analisa Sérgio Magalhães.

Eduardo Paes, eleito para novo procuração, decidiu retomar o Morar Carioca em 2022, com projecto de investimento de R$ 500 milhões. O atual secretário municipal de Habitação, Patrick Corrêa, disse que o objetivo é que o Rio volte a ser “vanguarda na construção de habitação de interesse social” e prometeu desenvolver programa específico para manutenção das favelas.

“O Morar Carioca é uma evolução oriundo do Favela-Bairro frente aos novos desafios urbanos, diante de novidade veras que já são favelas urbanizadas. Aprimoramos o programa, porque o conjunto e o contexto são diferentes para que ele possa responder às necessidades atuais. O combate ao déficit habitacional se dá em duas vertentes no programa: qualitativo – para levar infraestrutura (saneamento, drenagem, pavimentação) ao entorno das casas que já existem – e quantitativo – com a construção de unidades habitacionais”, diz o secretário.

A promessa é de que o programa também contemple outras áreas de interesse das comunidades.

“Estamos sempre trabalhando em conjunto com outras secretarias uma vez que a RioLuz, Ordem Pública, Infraestrutura, Meio Envolvente, Ação Comunitária e Comlurb, por exemplo. Com a Ação Comunitária, temos o Favela Com Honra, que leva diversos serviços públicos para várias comunidades. Uma vez que cada uma das comunidades tem sua peculiaridade, se faz necessário esse diálogo ordenado com outras secretarias, que nos apoiam na implementação do Morar Carioca”, acrescenta Corrêa.

Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Morro do Andaraí, atendido pelo programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ) 26/03/2024 – Morro do Andaraí, atendido pelo programa Favela Bairro, que completa 30 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro – Programa Favela Bairro completa 30 anos – Foto Fernando Frazão/Escritório Brasil

Participação e integração

Entre os principais objetivos anunciados pelo Programa Favela-Bairro no edital de 1994, estavam a integração das comunidades com o restante da cidade e participação ativa dos moradores nos planos de urbanização. Um tanto que, para especialistas e moradores, está longe de ser veras.

“A participação tem que ser efetiva e não só um aceite, uma exigência administrativa. Normalmente, técnicos da prefeitura vão até a comunidade, apresentam um monte de vegetação e documentações de topografias. Os moradores não têm muita exigência de compreender aquilo. E a gente sabe que vai ser revalidado, seja por essa falta de conhecimento técnico, seja porque os moradores precisam muito de intervenções que melhorem as condições do território”, diz Tarcyla Fidalgo.

“Favela, na cabeça das pessoas, continua sendo favela. Não mudou zero”, afirma Bete. “As autoridades não se importam. Fazem uns serviços pequenos, uma maquiagem e só. Teve uma vez aí que um desses políticos pintou meia dúzia de casas só para expressar que fez um tanto”, diz a moradora do Morro do Andaraí, Maria Elisabete.

“A gente sabe que a maior secção da população que mora no ‘asfalto’ tem preconceito com o pessoal da comunidade. Pensam, mesmo que de forma velada, que todo mundo cá é bandido. Eles não assumem isso publicamente mas, no fundo, pensam isso. Não querem integração, nem que a gente desça o morro. Querem que a gente continue cá. A não ser quando é para as nossas mães serem domésticas ou os nossos pais serem porteiros. Isso é o que eles querem”, diz Fernando Pinto.

Fonte EBC

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