O mar pode estar referto de peixes, mas também de tubarões. E as ondas podem vir com a força de um tufão ou morrer tímidas na praia. Mais charmosa das feiras de arte à praia, a ArtRio, bossa novidade no lugar do reggaeton da Art Basel Miami Beach, ou o peixe pequeno perto da fera assassina americana, traduz porquê nunca esse clima de calma antes da tempestade ou de rebentação que deu em zero.
Banquinho e violão ou a gasolina de que elas tanto gostam. Se o mundo ao volta pega queimação, em sentido zero metafórico, das florestas em chamas no país e debates eleitorais que parecem ringues de boxe aos bombardeios que asfixiam secção do planeta, as obras nesta edição do evento, que se desenrola até oriente final de semana, querem perceptível frescor, mesmo que enganoso.
Não faltam marinas plácidas, barquinhos que vão e vêm, porquê as dos românticos alemães Eduard Hildebrandt e Friedrich Hagedorn, levadas pelo marchand paulistano Paulo Kuczynski, nem alegorias tão soturnas quanto radiantes, o claro-escuro que solta faíscas de Oswaldo Goeldi, numa série de trabalhos à venda na mesma vivenda, peças que lançam talvez um olhar mais humano aos peixes do que a seus pescadores.
A sede é tanta que uma pintura retratando uma enorme vaga num mar revolto, obra de Kilian Glasner, da galeria Lume, foi vendida antes da franqueza da feira nesta quarta, só com uma prévia em PDF, um sinal de mercado aquecido.
Mas nem tanto. Talvez a porcaria que paira no ar, numa secura que sufoca até mesmo a maresia do Rio de Janeiro neste início de primavera, tenha turvado visões. Tudo, a inferir das reclamações dos galeristas nos corredores da Marina da Glória, o lar da ArtRio pelos últimos sete anos, parece estacionado, inútil quanto a paisagem assombrosa do Pão de Açúcar coroando barquinhos a vela no horizonte num calor que faz o mercúrio dos termômetros lamberem os 40 graus.
Se a vaga fresca de Glasner foi arrematada sem piscar, sinal dos tempos, outra série do mesmo artista, outro sinal dos tempos, logo foi posta à venda. No lugar do mar luminoso, uma floresta em chamas. Ele vem se dedicando ao tema nos últimos tempos, em telas tão apocalípticas quanto realistas, de matas rubras em brasa. Não tiveram a mesma acolhida.
Outro artista, Rommulo Vieira Conceição materializa, nas chaves caras à tradição geométrica e construtiva do nosso modernismo, esse frescor duvidoso, mas não sem ironia. Nas novas obras, à venda na paulistana Aura, ondas quebram vigorosas contra um fundo de padrões abstratos, azulejaria pura, mas a chuva tem uma rijeza lo-fi, moldada por pixels gritando em baixa definição.
Conceição afirma retratar um paradoxo, a exuberância tropical filtrada pelos ângulos duros do modernismo, um sopro de vida que, no entanto, morre na praia.
É um Brasil que se quer potência domado pelo circo da geopolítica, em que a subida econômica nos condena à perdição —petróleo ou paraíso num mundo que está à extremidade do eversão.
Bruno Faria, artista representado pela paulistana Marilia Razuk, mostra isso com ondas sonoras. Uma vitrola toca a “Sinfonia da Alvorada”, música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes encomendada para a inauguração de Brasília, na dezena de 1960, só que ao contrário. Aquele meio século que seria varado em cinco anos não passa de uma cacofonia distorcida, tudo em frangalhos.
É um país que volta a estar em chamas, sequioso. Também saltou aos olhos, nesta ArtRio, a profusão de trabalhos antigos de Adriana Varejão em oferta. Uma das artistas mais relevantes do país no último século, ela tem à venda, pelas mãos do chamado mercado secundário, as galerias que lidam só com grandes mestres, algumas de suas obras-primas, porquê uma tela de sua série sobre saunas, de um minimalismo tão elegante quanto assombroso, na carioca Flexa, por zero menos do que R$ 9 milhões.
Na paulistana Galatea, uma de suas pinturas da série que representa azulejos craquelados, está à venda por R$ 5 milhões, muito ao lado de um trabalho da dezena de 1990 de Beatriz Milhazes, tela raríssima, dos primórdios de suas alegorias geométricas, com preço de R$ 8 milhões.
Das ondas quebrando vamos à sauna seca e às rachaduras no piso. Essa é uma leitura turva do momento, que ao mesmo tempo não deixa de refletir o caos ao volta. Um sopro fresco, oxigenado que seja, não deixa de ser os retratos de Melissa de Oliveira, na galeria Nonada, dos cortes de cabelo descoloridos, navalhados, de rapazes que vão à luta trabalhados na régua todos os dias, os heróis de nossa hecatombe.