Uma mulher cuida de um varão no final da vida. Vê a saúde dele se inutilizar e a morte chegar dia a dia —enquanto isso, ela reflete sobre a relação dos dois, a passagem do tempo, o luto.
Uma história uma vez que outras, não fosse a dupla um dos casais que virou a cabeça da juventude na segunda metade do século 20 —Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
A autora relatou essa dolorosa despedida no livro “A Cerimônia do Adeus”, da Novidade Fronteira, de 1981, no qual reflete sobre a última dezena de vida do companheiro, a partir de diários próprios, testemunhos de conhecidos e entrevistas que fez com Sartre.
Em 2007, Fernanda Montenegro vivia uma experiência semelhante, diante da piora do quadro de saúde do ator, diretor e produtor Fernando Torres, seu companheiro, que morreria um ano depois.
“Fernando e eu vivendo essa partida, reli ‘A Cerimônia do Deus’”, afirma a atriz, hoje aos 94 anos. “E quis organizar, sim, esse texto para trazêlo à cena, lembrando e homenageando esse companheiro de vida e de fé teatral. Eu e ele nos juntamos profundamente por esse caminho e vivemos juntos durante 60 anos.”
É uma leitura de trechos desse livro —e outras obras da autora— que a atriz leva aos palcos em “Fernanda Montenegro Lê Simone de Beauvoir”. O solilóquio estreia sua temporada em São Paulo nesta quinta-feira (20), no Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis, com ingressos já esgotados.
“Há na vida sempre uma mulher cuidando do seu varão”, diz Fernanda. “A mulher tem mais tempo de vida do que o varão. Portanto, uma vez que não cuidar de um ser humano, que no caso é seu varão, seu paixão? E até mesmo sem paixão a mulher cuida. Esse ato humanista não se restringe às personalidades da dimensão de Simone e Sartre.”
Não é a primeira vez que a atriz leva a obra da filósofa francesa ao teatro. Em 2009, ela encenou “Viver Sem Tempos Mortos”, com direção de Felipe Hirsch, também baseada em textos de Beauvoir
Fernanda não encarna a autora. A novidade montagem é, uma vez que o título diz, uma leitura —no palco, estão unicamente uma mesa, uma cadeira, os óculos da atriz e a iluminação. A teoria era ter um espaço sem interferências demasiadas, que privilegiasse a proximidade com o público.
O contato com Beauvoir, um dos nomes mais importantes do feminismo, veio na juventude. A atriz ainda se lembra de quando leu o livro que, mais tarde, se tornaria a principal obra da intelectual.
“O feminismo já se fazia muito provocativo nos anos 1920. Em 1949, ‘O Segundo Sexo’ chega ao Brasil e fui eu ler, uma vez que a maioria dos jovens, esse sumário. Li de joelhos. Virou a bíblia da minha geração.”
Sartre e Beauvoir não eram uma influência para os jovens só pelos livros, mas também pelo jeito uma vez que viviam. Juntos por mais de 50 anos, os dois propunham um padrão dissemelhante de relação entre varão e mulher —semoto do que, para eles, eram noções burguesas de respeitabilidade.
Moravam em casas separadas. Nunca se casaram. Eram livres para ter os amantes que quisessem, de qualquer sexo —e os tiveram, aos montes. Viviam o que hoje se labareda de relacionamento crédulo.
“Toda maneira de amar vale a pena”, afirma ela, ao ser questionada sobre o padrão de parelha que os dois intelectuais franceses propunham.
O combinação sentimental de Sartre e Simone ainda rende debates. Uma fluente vê a relação de forma mais sátira hoje, uma vez que um restauro que tinha seus traços sexistas.
Fernanda também vê uma certa assimetria no relacionamento dos dois. “Perscruto sempre com uma lupa os personagens das minhas experiências cênicas. Simone e Sartre viviam uma liberdade sexual absoluta. Simone amava e cultuava Sartre. Sartre amava sim Simone —mas não a cultuava. Ouso proferir, não a cultuava”, afirma a atriz.
Em uma das conversas dos dois registradas em “A Cerimônia do Adeus”, por exemplo, Sartre admite ter assumido uma postura de dominação com as mulheres com quem se relacionou. E que se achava mais inteligente do que elas.
Em evidente ponto, ao ser questionado por Simone, o responsável diz que nunca teve um caso com uma mulher que julgasse feia. “Em nossas relações, sempre gostei que as mulheres fossem bonitas, porque era um jeito de desenvolver minha sensibilidade.”
Sartre, diga-se, era feiíssimo. Tinha dentes sujos, vestia-se com roupas maiores do que seu tamanho, media murado de um metro e meio. Há quem diga que pessoalmente era pior do que nas fotos.
Apesar da influência tão marcante de Beauvoir em sua vida, Fernanda continua atenta aos debates mais contemporâneos do feminismo.
Agora, por exemplo, tem lido com espanto o noticiário sobre o PL Antiaborto por Estupro, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante, do PL do Rio. Na semana passada, os deputados federais aprovaram o requerimento de urgência da proposta, em votação relâmpago conduzida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP de Alagoas.
“Tenho escoltado esse debate com totalidade indignação.”
Mesmo a filiação religiosa da atriz —em seu livro de memórias, ela fala da devoção à Virgem Maria— não a coloca em conflito com seu feminismo em debates assim, diz ela.
“Há muitas traduções sobre a fala da mãe de Jesus. Prefiro esta: ‘Que Deus faça em mim segundo a sua vontade’. É a resposta de uma mulher consciente. Maria é símbolo de uma feminilidade consequente.”
Apesar da indignação, Fernanda vê motivos para otimismo nesse debate. “O proveito de reconhecimento do ser humano pleno que é a mulher caminha, sim, com coragem e lei. E segue avançando.”