Maranhense que escolheu o Rio de Janeiro para morar, Ferreira Gullar passou a integrar a direção estadual do Partido Comunista Brasílio, o PCB, no final da dezena de 1960, quando a repressão da ditadura militar se tornava mais violenta.
Varão da trova –já havia publicado o elogiado “A Luta Corporal”–, das artes visuais e do teatro, ele resistiu inicialmente à possibilidade de aumentar sua atuação política, mas foi vencido pela insistência dos colegas do Partidão, porquê a {sigla} ficou conhecida.
A militância do PCB contra o regime se manteve distante da luta armada, o que não impediu que seus integrantes fossem duramente perseguidos pelos militares. A certa profundeza de 1971, Gullar já contava nove meses de clandestinidade. Havia deixado a família e vivia escondido em casas de amigos.
“O torvelinho continuava a puxar-nos, mais e mais, para o fundo”, escreveu Gullar sobre aquele momento em um dos primeiros capítulos de “Rabo de Foguete – Os Anos de Exílio”, que acaba de lucrar uma novidade edição pela José Olympio. Há alguns anos fora de catálogo, a publicação havia sido lançada originalmente em 1998.
Existem outras boas novas para os leitores do responsável, vencedor do Prêmio Camões em 2010 e morto há pouco mais de oito anos. Lançamentos e reedições jogam mais luz sobre o Gullar crítico de arte e o dramaturgo e sua trova, celebrada por cá, amplia seu público no exterior com novas traduções em curso.
Nessa sucessão de novidades, a reedição do livro sobre os anos de exílio se sobressai, entre outras razões, porque são poucas as publicações de caráter francamente autobiográfico na extensa obra do responsável. Mais do que isso, “Rabo de Foguete” não aborda um período qualquer, mas alguns dos anos mais difíceis da vida do poeta.
Depois de quase um ano de clandestinidade no Rio, Gullar se viu obrigado a embarcar para a União Soviética, onde fez cursos no Instituto Marxista-Leninista. “De repente encontrava-me em Moscou numa escola internacional de formação de quadros revolucionários porquê se fosse meu objetivo tornar-me um profissional do partido. Não era zero daquilo!”, anotou.
A paixão por Elôina, uma tradutora russa, ajudou-o a enfrentar a angústia durante os tapume de dois anos em que esteve na antiga URSS.
A período sul-americana do exílio foi mais difícil, indica “Rabo de Foguete”. Além da instabilidade por não saber se um dia retornaria ao Brasil, Gullar viveu as tragédias políticas dos países que lhe deram abrigo.
Em Santiago, acompanhou a derrocada do governo de Salvador Allende em meio ao golpe de Augusto Pinochet. Depois de uma temporada em Lima, mudou-se para Buenos Aires, onde testemunhou a subida ao poder de uma junta militar, que havia arrancado Isabelita Perón da Lar Rosada.
As dificuldades não se restringiam à política. Nessa temporada argentina, Gullar estava escoltado da mulher, Theresa Aragão, e dos três filhos. Um deles, Marcos, enfrentou fortes surtos de esquizofrenia nesse período em Buenos Aires.
Foi na capital argentina, em 1975, que ele criou “Poema Sujo”, que se consagrou porquê um símbolo da resistência à ditadura.
Não foi pouco o sofrimento, mas Gullar não cai na vitimização ao longo de “Rabo de Foguete”. Seu relato é por vezes comovente, mas sempre dentro dos limites da contenção. “Não existe uma heroicização de si mesmo. Ele mostra que não quer virar estátua, quer sobreviver”, diz o ensaísta e também poeta Antonio Carlos Secchin, que organizou um volume com a trova completa de Gullar pela Novidade Aguilar em 2008.
De congraçamento com Secchin, Gullar resistia a ortografar sobre o exílio para não reviver as angústias da era. Acabou sendo convicto pela poeta Claudia Ahimsa, sua mulher a partir de meados dos anos 1990.
“Fazer esse livro foi porquê um salto com rede de segurança para ele. Gullar mergulhava nesse pretérito na hora de ortografar, mas depois a gente saía para passear, para jantar”, lembra a viúva. “Acho que ele nunca faria esse livro se não estivesse comigo.”
Para Ahimsa, experiências traumáticas decorrentes da ditadura devem vir a público. O matéria está longe do esgotamento.
Segundo Miguel Conde, que prepara uma biografia de Gullar, a reedição de “Rabo de Foguete” pode se beneficiar da repercussão de “Ainda Estou Cá”, filme de Walter Salles que lembra a trajetória de Eunice Paiva e o desaparecimento de seu marido durante o regime militar.
“Embora os desfechos sejam diferentes, há um diálogo entre as histórias de Rubens Paiva e Gullar. Eles representam uma esquerda que fez oposição à ditadura sem aderir à luta armada e, assim, desmontam essa versão de que a repressão se resumia aos guerrilheiros”, afirma.
Antes da desenlace da biografia, Conde deve lançar uma compilação de textos de Gullar sobre artes plásticas. É um projeto para a Companhia das Letras que ele prepara ao lado de Sérgio Martins, da PUC-Rio.
Essa faceta do responsável foi reforçada recentemente com a publicação de “Ferreira Gullar Crítico de Arte”, de Marcelo Mari, professor da Universidade de Brasília. O livro mostra o período de 1950 a 1971, justamente quando o redactor deixou o país.
Menos sabido que o poeta e o crítico de arte é o Gullar dramaturgo. A editora Temporal lançou no segundo semestre do ano pretérito uma edição de “Se Percorrer o Bicho Pega, se Permanecer o Bicho Come”, peça escrita por Gullar em parceria com Oduvaldo Vianna Fruto, o Vianinha, em 1966.
Também voltou recentemente às livrarias “Em Alguma Segmento Alguma” em edição da Companhia das Letras, com posfácios de Secchin e Alfredo Bosi. O título havia conquistado o prêmio de livro do ano do Jabuti, pela edição original da José Olympio, de 2010.
A visibilidade internacional do responsável também se expande, segundo Maria Amélia Mello, editora de Gullar por décadas e hoje responsável por velar a obra do poeta. Textos dele chegaram aos Estados Unidos e a boa segmento da América Latina e da Europa. Agora “Poema Sujo” ganhará uma tradução em polonês.
Em “Extravio”, poema do livro “Muitas Vozes”, de 1999, Gullar pergunta: “Extraviei-me no tempo/ Onde estarão meus pedaços?”
Por toda a segmento, dirão seus leitores.