Filhos separados dos pais com hanseníase lutam por reparação

Filhos separados dos pais com hanseníase lutam por reparação

Brasil

Rita de Cássia Barbosa tinha exclusivamente 20 anos quando sua filha Giovana nasceu. Depois de um parto longo e difícil, recebeu do médico uma notícia aterradora: não poderia sequer ver a filha, muito menos pegá-la no pescoço ou amamentá-la. Um pequeno consolo veio pelas mãos de uma enfermeira: “Quando o médico saiu, ela chegou com a Giovana muito pertinho de mim. Ah, quando eu consegui vê-la, meu Deus do firmamento. Eu chorei muito, muito, muito…” lembra Rita.

Poucos meses antes, em uma consulta de pré-Natal, Rita tinha sido diagnosticada com hanseníase, e exclusivamente um dia depois da consulta, foi internada sem previsão de saída, no Hospital Curupaiti, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, à quadra uma das maiores colônias de hanseníase do país. Em 1974, quando Giovana nasceu, a lei ordenava que os bebês nascidos nas colônias fossem imediatamente separados das mães, para evitar a contaminação. Giovana foi enviada a um educandário.

“O governo foi covarde com todos nós daquela quadra, porque já tinham revelado o tratamento para a doença, que evita a transmissão. Mesmo assim manteve a gente só porque quis manter. Eu não precisava, e outras mães não precisavam, permanecer separadas dos filhos. Mas a sociedade não nos aceitava”, Rita diz, indignada.


Rio de Janeiro (RJ), 14/03/2025 - Rita de Cássia Ferreira Barbosa, ex-interna da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ), 14/03/2025 - Rita de Cássia Ferreira Barbosa, ex-interna da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Rita de Cássia Barbosa, ex-interna da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Sucursal Brasil

Ela só voltou a ver a filha depois de seis anos, quando recebeu autorização para trespassar da colônia e ir a um posto de saúde, e decidiu usar uma peruca e roupas diferentes, para se passar pela mana e poder entrar no educandário.

“Eu cheguei perto dela e falei assim: ‘Oi Giovana, tudo muito?’ Aí, ela olhou pra mim e perguntou: ‘Você é minha tia Ana?’. Eu olhei pros lados, vi que não tinha ninguém e falei: ‘Eu vou te descrever um sigilo, mas você não pode descrever para ninguém. Eu sou a sua mãe’. Ela deu um grito! Eu fui de novo outras vezes, mas fiquei com pavor de ser invenção e ocorrer alguma coisa com ela. Aí, eu parei”, conta Rita de Cássia.

O reencontro definitivo demorou mais oito anos, quando a colônia começou a permitir que crianças entrassem no lugar. Giovana, logo, pôde viver com a mãe.

Segregação

Por muito tempo, a hanseníase foi chamada de lepra, uma doença cercada de estigma. Ela é causada pela bactéria Mycobacterium leprae, também conhecida uma vez que microrganismo de Hansen, e afeta a pele e os nervos, provocando manchas, dormência, modificação ou perda da sensibilidade e, em casos mais graves, pode levar à necrose de tecidos, amputação dos membros e perda permanente da mobilidade. Mas a doença tem tratamento e deixa de ser transmissível logo no início do tratamento, que é disponibilizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde.

Ao longo de seis décadas, a política de tratamento da hanseníase no Brasil envolvia o isolamento dos pacientes em enormes hospitais-colônias, uma vez que o Curupaiti, sem qualquer previsão de subida. Não se sabe quantas pessoas foram internadas nesses locais durante todo esse tempo, mas, depois de 2007, quando foi sancionada a lei federalista que concedeu pensão vitalícia aos ex-internos, quase 12 milénio pessoas solicitaram o mercê, e muro de 8,7 milénio foram deferidos.

Já a soma dos filhos separados se aproxima de 20 milénio, pelas estimativas do Movimento de Reintegração dos Atingidos pela Hanseníase (Morhan). Depois de anos de luta, liderada pelo Morhan, em 2023, foi sancionada a lei que estende o recta à pensão a essas pessoas. No final do ano pretérito, a lei foi regulamentada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e, atualmente, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania recebe os formulários de requerimento, que são analisados por uma percentagem interministerial.

Maus tratos

Giovana, filha de Rita, já enviou seus documentos, mas preferiu não dar entrevista, porque não gosta de relembrar os 10 anos que passou no educandário. Marly Silva também diz o mesmo, mas aceitou dividir suas memórias dolorosas.

“Eu tinha de 5 para 6 anos, e me colocavam pra tomar conta de 60 crianças. Se não desse conta do serviço, a gente apanhava. Eu arrumava o dormitório, dava banho nas crianças, tinha que usar o escovão pra deixar o soalho brilhando, porque, de vez em quando, vinham umas visitas que eles chamavam de ‘frota’. Eles botavam as crianças todas arrumadinhas, alinhadas, e falavam assim: ‘Pode escolher a garoto que você quiser’. Aí as pessoas levavam, sem autorização dos pais, nem da família… “

Marly chegou a receber visitas da mãe, mas o momento de reencontro era seguido de mais agressões, exclusivamente porque, uma vez que filha, queria tocar nela.

“Depois, eu levava um monte de beliscões e ficava trancada em um quarto escuro, com ratos, baratas… Há pouco tempo, eu descobri que eu tenho pavor de escuro por pretexto disso. Eu fui fazer um examinação, dentro de uma máquina escura, e me deu uma agonia, uma aperto tão grande que eu pedi pra eles me tirarem”

Roberto dos Santos de Jesus relata um traumatismo parecido: “Esses dias, eu fui num parque aquático, e, quando, eu entrei no tobogã, começou a me dar fobia de estar em um lugar apertado. Aí, eu me lembrei de qualquer momento que fiquei trancado dentro de uma caixa, um tanto assim…”

Nos seus primeiros anos de vida, ele foi zelo por familiares, mas, depois, precisou passar três anos no educandário: “Eram regras em cima de regras, e tinham regras que a gente nem sabia que existiam, mas, se a gente descumprisse, a gente apanhava. Todo mundo apanhava, não importava o que acontecia.” Muitas vezes, as crianças também passavam miséria ou tinham que manducar vitualhas estragados, conta ele.


Rio de Janeiro (RJ), 14/03/2025 - Roberto dos Santos de Jesus, filho de ex-internos da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ), 14/03/2025 - Roberto dos Santos de Jesus, filho de ex-internos da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Roberto dos Santos de Jesus, fruto de ex-internos da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Sucursal Brasil

Sofrendo com essa situação, algumas famílias arriscavam entrar na colônia com as crianças escondidas, mas o pavor era tão grande, que geralmente o conluio era mantido por poucos dias: “Cada vila tinha um director da segurança, que ficava vigiando as casas. Quando tinha garoto, ele botava na rua… Batia nos pais, batia nos filhos e ainda botava pra fora pra voltar pro inferno do educandário”, explica Roberto.

Enfrentando a dor da separação e o pesadelo das torturas físicas e psicológicas, os filhos viam a colônia uma vez que um oásis. Em 1986, quando o Curupaiti abriu suas portas para crianças, boa segmento delas passou a viver nas pequenas casas de vila, destinadas aos pacientes internados com familiares, ou que formavam família dentro da colônia. Mas isso não resolvia todos os problemas.

Vida na colônia

Roberto continuou com pavor de ser separado novamente: “Logo que nós viemos para cá, periodicamente, tinha que fazer examinação. Eu morria de pavor de manar alguma ferida e me tirarem da minha mãe de novo. Logo, eu corria pra dentro da mata e ficava lá escondido o dia inteiro”.

Já Marly enfrentou a pobreza que assolava muitas famílias da colônia, e precisou trabalhar em casas de família durante a juvenilidade em troca de comida, sendo tratada com desprezo pelos patrões. Depois, conseguiu um trabalho dentro da própria colônia, e só logo encontrou “apoio” nas suas próprias palavras. Com seu primeiro salário, comprou um gravador, porque sempre gostou de trovar.

Muitos também passam até hoje por dificuldades burocráticas, porque não foram registrados no nome dos pais. É o caso de Giovana, que, na certificado de promanação, consta uma vez que filha dos avós maternos, e de Roberto, que até hoje se labareda “dos Santos de Jesus”, por ter sido registrado uma vez que fruto dos tios. Ele entrou na Justiça para ser adotado por sua mãe verdadeira e finalmente poder usar seu sobrenome: Santana. “Quero dar oriente presente a ela em vida”, diz.


Rio de Janeiro (RJ), 14/03/2025 - Marli da Silva Oliveira, filha de ex-internos da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ), 14/03/2025 - Marli da Silva Oliveira, filha de ex-internos da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Marli da Silva Oliveira, filha de ex-internos da Colonia de hanseníase do Hospital Colônia de Curupaiti, localizado em Jacarepaguá. Foto: Tânia Rêgo/Sucursal Brasil

Reparação

Rita de Cássia, que é chamada de “Mãe Rita” no Curupaiti, se tornou uma liderança da comunidade e tem ajudado muitos filhos separados a reunirem sua documentação, para solicitar a pensão federalista. Marly também está engajada nesse trabalho voluntário. Ela diz que muitos filhos separados não conseguiram prosseguir nos estudos, e até hoje batalham por trabalho, para fugir da miséria.

O Movimento de Reintegração dos Atingidos pela Hanseníase também tem feitos reuniões com os filhos separados em colônias para explicar uma vez que o mercê deve ser solicitado. O integrante do Mohan, Artur Custódio, diz que a pensão não vai exclusivamente emendar essa injustiça social, uma vez que também é uma ação de justiça de transição, uma vez que são chamadas as medidas que visam reparar violações de direitos humanos.

“Tem várias políticas do pretérito que, na verdade, eram crimes. A gente precisa olhar para trás e lembrar, para que não se repita, né? A política da hanseníase foi uma política eugenista, higienista, de limpeza da sociedade. Na quadra de Getúlio Vargas, se dizia assim: ‘essa doença é de classes perigosas’, e você vê que a segregação atingia principalmente negros e indígenas.”

Artur diz que muitos filhos separados já morreram sem receber qualquer reparação do Estado, mas acredita que a estudo em curso será feita de forma rápida, e os beneficiados poderão receber suas pensões mensais, no valor de um salário mínimo e meio, em breve. Segundo ele, mais de 5 milénio processos já foram enviados, e muitos outros chegarão à percentagem interministerial nas próximas semanas. O Ministério dos Direitos Humanos foi procurado para dar uma previsão de pagamento do mercê, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.  

 

Fonte EBC

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