Estrutura e ritmo, no documentário, costumam estar distantes do cinema de ficção. Ana Aranha, porém, entendeu que precisaria promover um tálamo entre os formatos para recontar a chacina de Pau d’Roda de maneira suficientemente impactante, sem ceder o compromisso com a verdade que ela, jornalista antes de cineasta, precisava manter.
“Isto não é jornalismo. Isto não é ficção”, dizia uma placa fixada supra da ilhota de edição na qual ela e seu montador, Daniel Grinspum, finalizaram “Pau d’Roda”. O aviso serviu para guiá-los na hora de reconstruir, nas telas, o massacre que deixou dez trabalhadores sem terreno mortos no sul do Pará, há oito anos.
Um 11°, protagonista de “Pau d’Roda” e responsável por narrar a tragédia que testemunhara ao testemunha, foi executado durante as gravações. Sua morte parece um “plot twist” que aproxima o documentário dos gêneros de delito e suspense, com seus roteiros tomados por reviravoltas –quase uma vez que em “Psicose”, que perde seu fio-condutor, Marion Crane, inesperadamente.
“Principalmente depois do homicídio do Fernando [Araújo dos Santos, morto em janeiro de 2021], precisávamos de um filme que dialogasse com muita gente, para invocar a atenção para o caso. A ficção entrou uma vez que um recurso poderoso –a montagem tem ritmo, os entrevistados são personagens, a narrativa tem orgasmo e viradela”, diz Aranha, que tomou “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, uma vez que referência.
Coordenadora de projetos especiais da Repórter Brasil, voltada a jornalismo investigativo nas áreas socioambiental e de direitos trabalhistas, Aranha já havia dirigido o curta “Relatos de um Correspondente da Guerra na Amazônia”, sobre o homicídio do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.
Ao tapar a disputa por terreno em Pau d’Roda, imersa em violências e ameaças, e ser surpreendida, em maio de 2017, pela chacina, ela percebeu a vocação da história para as telas.
Aranha fez 13 viagens ao Pará entre 2017 e 2024, enviada pela Repórter Brasil, que entrou uma vez que produtora. Em paralelo às matérias que escrevia, capturava com a câmera o que se tornaria o documentário, um dos destaques desta edição do festival É Tudo Verdade, com programação até 13 de abril.
Na chacina, maior massacre no campo nas últimas três décadas, policiais executaram dez trabalhadores sem-terra que ocupavam a quinta Santa Lúcia. Dois policiais civis e 14 militares foram indiciados pelo delito e aguardam julgamento por júri popular. Apesar de réus, continuam soltos e em atividade.
Na última atualização do caso na Justiça, duas investigações que poderiam revelar os mandantes foram encerradas sem mostrar responsáveis, segundo inquéritos obtidos pela Repórter Brasil. Em dezembro, o governo anunciou que Santa Lúcia será desapropriada para receber 224 famílias que integram o MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terreno.
“Tomávamos uma série de medidas de proteção, mas o risco que eu corria era incomparável ao de quem mora lá. Nossa preocupação era trazer ainda mais risco para aquelas famílias, por retaliação. Quando o Fernando foi assassinado, refletimos o quanto nossa presença teria piorado as coisas, mas muitos entenderam que a exposição trazida pelo filme poderia servir de proteção”, diz Aranha.
“Pau d’Roda” não é um documentário de cabeças falantes –aqueles em que os entrevistados se alternam para grudar os fragmentos de uma história. O filme segue ritmo de investigação, fundeado nos testemunhos de Fernando –capturados em momentos do seu dia a dia e em meio a protestos e comparência a fóruns de Justiça– e de José Vargas Júnior, legista das famílias.
Aranha considera os dois os grandes trunfos do filme. Além do conhecimento sobre o caso, chamou a atenção o carisma e a facilidade que tinham para mourejar com a câmera. Graças a eles, a jornalista e diretora conseguiu gerar uma conexão entre o campo, onde a ação se passa, e a cidade, onde estão os espectadores.
Diferentemente dos filmes de ficção, porém, “Pau d’Roda” não tem primórdio, meio e termo. Porquê o caso da chacina, ele fica em desobstruído e encerra sua narrativa com o amargura da incerteza. “Você acredita que a justiça será feita?”, pergunta Aranha ao legista das vítimas, Vargas.
Questionada pela reportagem, a jornalista e cineasta diz ter esperança. “Eu preciso crer que sim, e vou continuar cobrindo e denunciando o que mais eu desenredar sobre o caso. Se eu achasse que não há chance, já teria parado. Espero que o filme faça qualquer estrondo.”