Filme De Denys Arcand é Pior Que O Politicamente Correto

Filme de Denys Arcand é pior que o politicamente correto – 04/07/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Ainda nos minutos iniciais de “Testamento”, Jean-Michel Bouchard, interpretado pelo ótimo Rémy Girard, está numa cerimônia cultural para receber um prêmio peculiar “para nossos idosos”, conforme diz a apresentadora.

Antes dele, escritoras feministas subiram para receber seus prêmios, cada qual por um livro dissemelhante — um deles se intitula “Vaginas em Chamas”. Elas passam praticamente por cima de Bouchard no caminho para o palco.

Quando ele finalmente é chamado, as palmas são tímidas, muito dissemelhante da acalorada reação às outras premiadas. Por que um varão branco, da terceira idade, provavelmente preconceituoso e privilegiado, deveria receber qualquer prêmio?

Na verdade, o prêmio é por motivo de livros que um outro Bouchard escreveu, de nome Michel Marc, um dramaturgo famoso com o qual Jean-Michel foi confundido. Ele procura emendar o equívoco, mas é solenemente ignorado.

As causas de Denys Arcand são evidentes. A cultura é dominada por gente medíocre. A sociedade só é coletivista na procura pela mediocridade. As lutas das minorias se encaminham, por mais válidas que sejam, reescrevendo irresponsavelmente a história da arte, enquanto o etarismo voa livre e solto, corroendo a teoria de justiça social e paridade de possibilidades.

O diretor parece disposto a soltar farpas para todos os lados, dos idosos sarados aos jovens ativistas, dos jornalistas arrogantes aos políticos, passando por um varão caricatural, vivido pelo também diretor Robert Lepage, que ocupa o missão de ministro da Cultura.

Estão num nível aquém da caricatura as feministas e os chamados identitários, o que dá a entender claramente que o filme declara guerra ao politicamente correto.

Denys Arcand teve seu momento de glória no rodeio descolado da segunda metade dos anos 1980, com o lançamento de “O Declínio do Poderio Americano”, de 1986, seguido, um pouco mais tarde, por “Jesus de Montreal”, de 1989. O segundo é superior ao primeiro, mas nenhum deles faz jus à glória do diretor.

Não melhora com o filme seguinte, “Paixão e Sobras Humanos”, de 1993. Arcand saiu um pouco do planta. Em 2003, ressurge com “As Invasões Barbaras”, hino ao paladar médio embuçado de subida cultura que fez estrondo, fazendo voltar o nome do cineasta aos holofotes da cinefilia. Quase todos esses filmes têm Girard no elenco.

Em 2023, posteriormente alguns filmes pouco falados por cá, incluindo o terrível “O Reino da Formosura”, de 2014, e o estranho “A Queda do Poderio Americano”, de 2018, tentativa de voltar à verve artística do filme de 1986, Arcand ressurge com “Testamento”, espécie de acerto de contas com o mundo atual.

Mais uma vez temos seu olhar de superioridade em relação às pessoas e ao mundo, o que não seria problema se essa superioridade encontrasse coro em seu trabalho de roteirista e diretor, mas isso nunca acontece. Arcand não é Godard, definitivamente, e dirige de modo acadêmico, salvo um ou outro momento.

Criticar as pautas atuais nunca será um problema. O caso é que a sátira de Arcand é mais tola que as falhas do politicamente correto. Em um momento logo no início, Bouchard conversa com um colega que lhe diz que nomes porquê Michel Foucault e Andrei Tarkovski hoje estão na lata de lixo da história, completamente esquecidos.

Ou o filme se passa daqui a uns 50 anos ou o personagem ignora que Foucault é citado em várias pesquisas acadêmicas de humanas e Tarkovski se tornou cineasta cultuado, seu nome maior que os filmes. Entende-se a ironia, mas o golpe só atinge o ar.

Esse tipo de tolice abala ainda mais o que poderia ser um importante grito de recusa, um tanto de que o mundo de hoje, sobretudo o da cultura e das artes, merece.

“Testamento” só é realmente interessante quando foca em Bouchard, em sua desilusão, assim porquê no sentimento de que sua vida está no término.

Ou seja, o filme nos toca quando reforça o testamento do protagonista, ou do próprio Arcand, talvez, e se enfraquece quando procura a sátira a um estado de coisas, o testamento da subida cultura. Melhor no decadentismo do que na sátira.

E nos toca ainda mais quando Bouchard se enche de vida e procura maneiras de prolongar sua existência, nos raros momentos em que o filme parece expor “aquém o etarismo e o derrotismo” e mostra um caminho mais florido para o protagonista.

Folha

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