Um presidente que organiza motociatas pelo país, repete o lema “Deus, pátria, família”, devolve protagonismo a generais e é chamado de mito. Não vasqueiro, intercala a sentença “tá ok” entre uma frase e outra. Mas esta é uma obra de ficção. E oriente presidente não é Jair Bolsonaro (PL).
“Não estamos personalizando. Não nos interessa o Bolsonaro, nos interessam os fascistas”, diz à Folha o cineasta Ruy Guerra, 93, sobre seu novo filme, “A Fúria”, o último da trilogia iniciada 60 anos detrás com “Os Fuzis” (1964) e “A Queda” (1976).
“Pegamos essa história, que é mais atual, porque a gente está fazendo um filme para 2024, mas, na verdade, os conceitos já estão aí há muito tempo representando o fascismo”, diz Luciana Mazzotti, que divide a direção com o veterano.
Em “A Fúria”, um varão morto pela ditadura militar (Mário) ressurge anos depois para fazer justiça. O presidente da República é praticamente um figurante, com recta a poucas cenas e a quase nenhuma fala. Quem dá as cartas são os outros: um poderoso presidente da Câmara dos Deputados, um general, um empresário, um pastor, um ministro do Supremo.
Mesmo sem destaque na trama, o presidente imaginário trouxe desdobramentos reais. Em 2022, o governo Bolsonaro determinou a exórdio de um interrogatório na Polícia Federalista depois que imagens vazadas do set mostraram um ator com a fita presidencial sujo de sangue.
“Havia ameaças, mandaram carros rondar a produtora em São Paulo, enfim, aquelas coisas difusas que são colocadas. Eu fui ameaçado de morte várias vezes. [Houve] esse tipo de coisa, mas a gente não se intimidou. Pagou para ver”, diz Ruy.
Luciana conta que, além das ameaças de morte, Ruy foi chamado para prestar testemunho de forma opcional —ao que consta, a única repercussão do interrogatório lhano pela PF por ordem do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
“Quando terminamos de gravar o filme, no meio de 2022, a gente precisava de mais moeda para finalizar. Não nos foi oferecido. A gente só conseguiu esse moeda depois que o Lula venceu. Se o Bolsonaro tivesse vencido, o filme não teria sido terminado”, avalia a diretora.
Durante a estreia do filme, na sexta-feira (6), Ruy agradeceu à equipe do 57º Festival de Brasília do Cinema Brasiliano, “pela coragem política, estética e civilizacional” de exibir o longa. O filme disputou a Mostra Competitiva do festival.
Ao longo da sessão de estreia, houve risadas e gritos de “sem anistia” nas cenas em que o presidente da República aparecia. Ruy foi aplaudido de pé ao subir no palco do Cine Brasília antes da exibição para falar do longa. O filme deve estrear para o grande público no ano que vem, segundo a equipe.
“Foi um filme nitidamente perseguido politicamente. E não só. Psicologicamente, [recebeu] outras formas de intimidação, et cetera. E nós tiramos de letra, na teimosia de manifestar ‘Não é mal vão nos embatucar. Essa é uma maneira muito ignóbil, muito baixa’. Nós recusamos”, disse o diretor antes da exibição.
“Eu acho que a coragem de assumir o filme não é somente pela presença de uma morte de um presidente. É porque existe também a representação dos herdeiros da ditadura, que enriqueceram na ditadura. A gente dialoga com isso no filme”, avalia Luciana.
Ruy buscou no segundo filme da trilogia o personagem de Lima Duarte, Salatiel, um empresário corrupto de saúde debilitada. Trouxe também de volta Mário, interpretado nos dois primeiros longas pelo ator Nelson Xavier, morto pouco antes do início das gravações de “A Fúria”, e vivido desta vez por Ricardo Blat.
“A Fúria” é também o último filme do ator Paulo César Pereio, que morreu em maio —com quem Ruy havia trabalhado em “Os Fuzis”. “Velhos companheiros de estrada”, diz o diretor sobre o elenco de peso.
Grace Passô (premiada no Festival de Brasília de 2018 com “Temporada”), completa a risco de frente no papel de uma deputada —personagem inspirado, segundo a diretora, na ex-vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL), a quem o filme é devotado.
Ruy diz que a trilogia vai permanecer ensejo. “A gente vai inventar qualquer coisa para transfixar a trilogia e continuar”, diz. “Ele vai dar para mim, a gente já combinou isso. Passa para mim que eu continuo com as mulheres. Acho que você fechou a história do Mário de maneira muito digna”, brinca a diretora.
O filme também inova na linguagem, ao usar cenários com vídeos projetados (técnica conhecida uma vez que video mapping). Diferentemente dos outros dois longas da trilogia, Ruy também buscou simbolizar o poder através dos que estão nos altos cargos de Brasília.
“É um filme sacana, da paródia. Quer manifestar, [tem] personagens que são no nível do ridículo. É sério e não é sério, pode-se manifestar assim. O Brasil não é um país sério. Esse não é um filme sério, dentro dessa leitura primária. Mas é um filme muito sério”, afirma o diretor.