Em um conjunto habitacional barulhento em São Paulo vive uma família que se ancora na matriarca. Ela é o sustento financeiro, cuida das filhas, do marido e faz as tarefas domésticas que recaem sobre as mulheres, porquê muito se sabe.
Esse cenário é o ponto de partida de “Família de Sorte”, novidade comédia de Viviane Ferreira, que dirigiu “Ó Paí, Ó 2” e é presidente da Spcine.
A trama, escrita por Maria Shu, acompanha o desenvolvimento do par Jennifer, interpretada por Micheli Machado, e Maicon, papel de Robson Nunes. Ela trabalha em uma clínica pediátrica e ele era segurança de um galpão até ser destituído, o que o faz querer se inscrever para um reality show.
Mas sua esposa, sem saber, também é inscrita pelo irmão, Cleitinho, é selecionada e deixa Maicon a missão da mansão e das duas filhas, Riana e Bionce —uma homenagem às divas pop.
A família é composta por pessoas negras, assim porquê grande segmento do elenco, mas não se fala muito sobre isso. O filme retrata o cotidiano de uma família brasileira parecida com a maioria da população, que se identifica porquê preto ou pardo de pacto com o IBGE.
O filme surge em um momento de quem repto, segundo Ferreira, é fazer o público se enamorar novamente pela experiência de ir ao cinema. Para isso, ela acredita que eles precisam se enxergar nas telas.
Ela cita filmes porquê “Nosso Sonho”, que retrata a dupla de funk Claudinho e Buchecha e foi sucesso de sátira, “Mussum, O Filmis”, cinebiografia do humorista Mussum, que estreou com a maior bilheteria de 2023 e foi o vencedor da 51ª edição do Festival de Cinema de Gramado, e o próprio “Ó Paí, Ó 2”.
“O que esses três filmes têm em geral, para além de serem filmes lançados pós-pandemia, é que se debruçam sobre trajetórias e experiências de personalidades que são facilmente identificadas por 56% da população brasileira. São protagonismos e personalidades negras”, diz.
Para a diretora, há uma vácuo no cinema brasílio que não retrata essa população. “O nosso filme chega para dialogar exatamente com essa audiência.” A expectativa de Viviane, que também é presidente da Spcine, é atrair muita gente para o cinema quando o filme for lançado —com previsão para o segundo semestre de 2024.
Ainda que os personagens não sejam alheios ao seu pertencimento racial, eles não falam o tempo inteiro sobre racismo. No reality criado no filme, todos os participantes são negros, mas isso não é um tópico verbalizado.
“A maneira estereotipada porquê as pessoas negras têm sido historicamente retratadas no nosso audiovisual faz com que todas as vezes que a gente pense em um elenco preto, a gente o coloque involuntariamente agindo contra o racismo e não simplesmente vivendo”, afirma. “A gente merece viver, sonhar, se emocionar e pensar uma vida em plenitude.”
Essa teoria surge desde a concepção do projeto da produtora Gullane. “Nós precisamos gerar um imaginário brasílio, considerando que o país é majoritariamente afrodescendente, com histórias positivas de um cotidiano menos de exceção, não ligado à marginalidade”, diz Caio Gullane, produtor do filme, que é coproduzido pela Warner Bros. O longa também recebe fomento do governo do estado de São Paulo, com incentivo do fundo setorial bravo pela Ancine.
O filme trata de assuntos sérios, assim porquê os trabalhos de Viviane, voltados para um audiovisual identitário, mas ainda assim é uma comédia. Ela conta que só aceitou encaminhar o projeto sob uma exigência: rir com as pessoas negras e não rir das pessoas negras.
Para isso, Robson e Micheli, que também são um par na vida real, emprestaram seu humor, química e experiência para os personagens. Eles estão juntos há 21 anos e já possuem um espetáculo de stand-up comedy, que fazem pelo Brasil, chamado Roupa Suja se Lava no Palco. Essa é a primeira vez que contracenam juntos em um filme.
Robson diz que algumas vezes relembra experiências que viveu porquê pai de moça e que o humor, para ele, também está em ver o desespero de um pai de uma jovem. “Tem hora que te dá desespero e tem algumas cenas que eu volto no tempo”.
Não só o par traz a viveza para as cenas, mas as locações também. O caminho que Jennifer faz no ônibus para ir ao trabalho mostra a cidade, além de cenas típicas do cotidiano brasílio no conjunto habitacional que a reportagem acompanhou —um espaço vivo e colaborativo, com crianças correndo de um lado para o outro e vizinhos curiosos.
Na mansão há detalhes que dão vida à trama, porquê fotos e desenhos das crianças na geladeira e um altar religioso. Ferreira, a diretora, diz que a religiosidade e a fé estão presentes na vida desses personagens sem nenhum ritual específico.
“[O filme] dialoga com aquilo que o brasílio tem de melhor dentro de si, a fé”, diz. “Chega um momento em que todo brasílio bota seu joelho no milho e reza para ter sorte, para alguma coisa desabar do firmamento e mudar de vida.”
