A vida é urgente, escapa entre os dedos. Mas Geraldo Sarno nunca teve pressa. A primeira exibição pública do segundo filme do cineasta baiano, “Auto de Vitória”, de 1966, quase 60 anos em seguida ter sido finalizado, é prova cabal de uma filmografia indelével.
A sessão única na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nesta quarta-feira, apresenta uma novidade traslado do dedo feita pela equipe da Cinemateca Brasileira da obra que estava perdida e dos quais paradeiro era incógnito até mesmo do próprio diretor, que morreu, em 2022, sem saber onde estava o filme.
Redescobri a obra durante a pesquisa para “Geraldo Sarno, o Cineasta que Virou Sertão”, biografia que estou escrevendo e planejo lançar no próximo ano. Havia uma lata de 35 mm num galpão da Cinemateca talhado a filmes dos quais estado de conservação é duvidoso. Não é verosímil saber se “Auto de Vitória” foi sobrevivente do incêndio de 2016 ou mesmo da enchente de 2020. O traje é que o filme vai chegar ao público com a potência das imagens preservada.
“Auto de Vitória” se divide em duas partes —uma ficcional, com retrato psicodélica de Affonso Beato e trilha de Rogério Duprat, e outra documental, acompanhando o cortejo sepulcral do fêmur atribuído ao padre jesuíta José de Anchieta em estilo cinema direto.
São sequências poderosas —um tanque de guerra estacionado em frente à catedral da Sé, carros da força pública e do tropa tomando a avenida Tiradentes, em frente a Pinacoteca de São Paulo, tudo isso enquanto ouvimos o vigário Agnelo Rossi falar de sossego e democracia.
Anchieta é apresentado porquê guardião da moral e representante da resguardo da integridade pátrio, o que se alinha ao projeto de país pensado pelos militares na incipiente ditadura instalada no país. O Dia Pátrio de Anchieta foi instituído pela lei nº 5.196, de 24 de dezembro de 1966, assinada por um dos artífices do golpe militar de 1964, o presidente Castello Branco.
Esse uso político da fé, patrocinado pela igreja e pelo Estado, é o eixo mediano de “Auto de Vitória”. Por isso o resgate do filme é simbólico, porquê se resgatássemos secção da memória de um país com feridas ainda não cicatrizadas.
O primeiro filme de Geraldo Sarno, “Viramundo”, de 1965, inaugurou uma filmografia que procura oferecer uma consciência sátira aos espectadores, sobretudo por uma reflexão sobre a cultura popular. Os versos da música que abre o filme, com letra de Gilberto Gil e Capinan, eram prenúncio do projeto que viria a seguir: “Quem olhar para esta terreno pensa que perde a razão”.
O segundo filme dele seria um documentário sobre a loucura. Junto a professores da Universidade de São Paulo, Sarno descobriu que a maioria dos internos nos centros psiquiátricos da cidade tinha origem nordestina. O protagonista seria uma pessoa que decidiu por não conseguir tarefa. Mas faltou numerário e o projeto nunca saiu do papel.
Diante da frustração, Sarno embarca no “Auto de Vitória” em parceria com a Escola de Arte Dramática, criada por Alfredo Mesquita, e incorporada anos depois à USP.
Os alunos encenam “Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício”, escrita pelo padre Anchieta em 1595. Na adaptação para o cinema, Lúcifer e Satanás são os protagonistas e decidem o horizonte do Brasil —o que quase custou o papel de Celso Nunes, tradutor do Bom Governo.
“Geraldo reduziu muito o papel dos personagens religiosos. Esse olhar ajudou o filme a evitar uma questão mais existencial e se concentrar na veras crua daquilo que estava se instalando no país”, diz Nunes.
Ele fez curso porquê diretor de teatro e é pai do ator Gabriel Braga Nunes e da produtora teatral Nina Braga Nunes. Aos 83, viu a obra que filmou com 25 pela primeira vez. “Eu gostei muito do filme ter captado essa presença ostensiva do tropa nas ruas de São Paulo. E pelo olhar de um cineasta baiano, do sertão, nascido na pequena cidade de Poções. Não por alguém da cidade grande. Isso é muito interessante”.
O oração político, travestido com retórica evangelista e de prosperidade, já existia em 1966. “Auto de Vitória” é o testemunho disso. Depois de uma sequência de coisas girando —um carrossel, uma roda de pessoas, pássaros, uma muchacho no balanço—, a câmera se encontra com o Sol. O debate entre Lúcifer e Satanás termina na luz. Será a salvação ou a perdição do Brasil?