Yorgos Lanthimos costuma ser execrado por certa segmento da cinefilia. Suas ideias muito mirabolantes, a visão bastante negativa sobre a humanidade e o paladar por um formalismo que nem sempre se justifica para além da simples afetação compõem uma fórmula infalível demais para não perturbar seus detratores. Estes que ele coleciona desde que se tornou sabido, em 2009, com seu presunçoso longa “Dente Cínico”.
Tal hostilidade não é todo obscuro, mas o indumentária é que o diretor heleno parece vir conseguindo a cada novo longa transformar o que seriam seus defeitos exatamente no oposto: são o que têm tornado, por exemplo, um filme uma vez que “A Favorita”, de 2018, um verdadeiro delícia. E também fazem segmento do que faz de “Pobres Criaturas” um dos grandes filmes do ano.
Seu merecido Leão de Ouro no Festival de Veneza atesta que Lanthimos chegou a um domínio sobre o cinema fundamentalmente barroco que ele próprio inventou —com fartas doses de inspiração em nomes uma vez que Lars von Trier e Stanley Kubrick, é muito verdade.
Sua obra mais recente, na verve menos lacônica e mais falastrona, debochada, tem rendido filmes mais muito acabados e até fáceis de reputar, mesmo nos meios em que o cineasta costuma ser mal-recebido.
A trama sobre um pesquisador maluco, vivido por Willem Dafoe, começa depois que ele transplanta o cérebro de um recém-nascido para o corpo de sua mãe, que acabara de cometer suicídio. Surge, assim, Bella —Emma Stone—, a adulta com cabeça de bebê, que ao longo do filme vai se transformando e se adaptando ao mundo com uma inacreditável esperteza e uma voraz vontade de aprender. Em dias, passa da inocência totalidade para a sabedoria extrema, e não há personagem no filme páreo para sua sagacidade.
Nessa trajetória, Bella tem ânsia por testar e se entregar aos prazeres mais óbvios e carnais: é muito engraçado vê-la se empanturrando de pasteizinhos de nata, passando do enojo ao torpor quando toma o primeiro porre, ou simplesmente não conseguindo entender por que as pessoas não fazem sexo o tempo todo.
Sua falta de superego e de preocupação com a opinião alheia são um elemento de libertação de uma sociedade que procura o tempo inteiro tolher ou até reprimir quem não segue regras. Mas Bella faz as suas próprias, e pouco se importa com quem as julga inadequadas.
“Pobres Criaturas” lida com um tipo de feminismo curioso, que não faz uso de uma certa chatice professoral e moralista tão generalidade em alguns filmes que elevam suas protagonistas à requisito de um ser supra do resto da humanidade. Até porque Bella está longe de ser essa mulher; seu feminismo existe de um modo salutarmente orgânico, que vem encravado na própria núcleo daquela estranha indivíduo inventada pelo doutor amalucado.
De patente modo, é uma vez que se o longa fosse uma espécie de anti-“Barbie”. Aliás, é interessante que os dois filmes tenham sido frequentemente comparados por alguns críticos, já que mostram duas personagens ingênuas e puras jogadas em um mundo machista e referto de percalços. Mas a boneca da Mattel deixa de viver em uma redoma cor-de-rosa para saber os dramas terrenos sempre enquanto uma vítima da cruel verdade humana.
Já Bella, desde seu surgimento, faz o resto da humanidade de gato e sapato. Sofre ao desvendar a miséria do mundo, mas não se deixa oprimir —utiliza as grandes falhas da sociedade, a hipocrisia e o conservadorismo, uma vez que sua grande arma (nesse sentido, sua personagem lembra muito Abigail, que Stone interpretou no já mencionado “A Favorita”).
Barbie e Bella são quase que arquétipos do tipo de visão de mundo e de cinema de seus respectivos diretores. No caso de Greta Gerwig, linear, convencional e meio infantilizada, enquanto no de Lanthimos, rebuscado, amoral e mordaz.
Talvez o filme vá um pouco longe demais quando Bella usa a prostituição para obter numerário, porque apesar de nesse contexto o meretrício ser um gesto emancipatório, há um elemento glamorizante no modo uma vez que o diretor o apresenta, que talvez exigisse tratamento mais frágil. Mas Lanthimos, isso já está simples, não é um cineasta de comedimentos.
Mark Ruffalo, mais uma vez, está em estado de perdão. Seu Duncan é um sujeitinho asquerosamente machista, mas que evolui para um pobre coitado, comendo o pão que o diabo amassou em seguida se enamorar por Bella.
A cena de dança entre eles em um salão de Lisboa já é um marco do cinema cômico contemporâneo, mas o filme traz vários outros momentos reluzentes com ele —uma vez que quando ele leva um tapa de Bella e reage com uma guisa entre o susto e um inesperado masoquismo. Ou quando grita o nome da dulcinéia dolorosamente diante de uma escada, satirizando Marlon Frouxo e seu célebre brado “Stellaaa!”, de “Uma Rua Chamada Perversão”, de 1951.
Willem Dafoe, na pele do pesquisador ultrapragmático de rosto retalhado, também merece só elogios. E há, obviamente, Emma Stone, que cria uma Bella tão peculiar que levanta suspeitas de que o filme talvez fosse inviável sem ela. A atriz desenvolveu uma maneira inarticulada de se movimentar, que vai se normalizando com o proceder do filme, à medida que Bella também vai amadurecendo mentalmente. É um trabalho de um domínio sobre o próprio corpo excelente —só uma atriz de primeiríssimo time seria capaz fabricar um pouco assim. Neste filme, Stone se consagra de vez uma vez que uma delas.