Nos anos 1950, o Brasil buscava uma identidade para apresentar ao mundo. É a dezena da construção de Brasília e do Maracanã, logo o maior estádio do mundo, e do primeiro título da seleção na Despensa do Mundo.
Esse país tropical e do futebol seria também o país do samba, que já existia havia algumas décadas, mas começava a lucrar mais visibilidade no Rio de Janeiro. A música que melhor encapsula esse momento, “A Voz do Morro”, escrita por Zé Ketti, surgia coberta por paisagens no filme “Rio, 40 Graus”, precursor do cinema novo, de Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1955.
Mas questões porquê essa surgem somente nas brechas de “Eu Sou o Samba, Mas Pode me Invocar de Zé Ketti”, de Luiz Guimarães de Castro, novo documentário sobre o sambista, cuja influência é palpável até hoje —mais de centena anos depois de seu promanação. O filme estreia esta semana no festival In-Edit, em São Paulo.
“Eu Sou o Samba” procura Zé Ketti através de histórias de familiares e conhecidos no Rio, algumas entrevistas e imagens de registro e uma penca de performances musicais, com uma margem interpretando suas composições. Não chega a contemplar a força criativa do sambista e nem seu impacto na cultura e na sociedade brasileira.
Zé Ketti foi um dos primeiros sambistas “do morro” —no caso dele, de comunidades do subúrbio carioca porquê Inhaúma, Bento Ribeiro e Bangu— a lucrar o asfalto. Nos anos 1950 e 1960, ele já era inspiração e tinha papéis no cinema —caso de “Rio, Zona Setentrião”, também de Nelson Pereira dos Santos— e nos palcos —em “Opinião”, uma das primeiras obras de impacto contra a ditadura militar.
Nessa idade, o mais generalidade é que os sambistas dos morros se limitassem a trabalhar para suas escolas de samba. Cartola e Nelson Cavaquinho, por exemplo, só gravaram suas músicas na dezena de 1970, quando já eram compositores consagrados. Duas décadas antes, a música de Zé Ketti já estava nas telonas dizendo que o samba era preto e periférico.
Espetáculo que revelou Maria Bethânia, substituta de Nara Leão, “Opinião” tinha três composições de Zé Keti, e ele atuava no show. A faixa-título, aliás, depois inspirou um jornal, um teatro e o segundo álbum de Leão. Ela, aliás, já havia gravado “Diz que Fui por Aí”, constituição do sambista, em seu primeiro álbum solo, “Nara”, e a proximidade de Zé Kétti abriu os horizontes de sua obra para além da bossa novidade.
Todas essas histórias surgem de maneira fragmentada nos relatos sobre Zé Ketti presentes em “Eu Sou o Samba” —em próprio, o de Geisa Kétti, sua filha. Mormente para quem não tem intimidade com a história do sambista, não há porquê compreender a dimensão de sua obra e seus feitos.
Esse diálogo com a zona sul carioca, aliás, gerou críticas para Zé Kétti, culpado de ter embranquecido por quem vinha, porquê ele, de origem pobre, na zona setentrião. São tensões pouco exploradas no documentário, que também não dedica muitos minutos a pesquisar por que ele saiu da Portela, onde despontou porquê compositor nos anos 1940, e sua mudança para São Paulo.
Mas o que derruba “Eu Sou o Samba” são as performances musicais que representam praticamente metade do filme. As músicas de Zé Ketti parecem melhor representadas quando entoadas numa roda de samba casual na Portela, em uma cena cândida e pulsante do documentário, do que nos arranjos pomposos em um salão fechado.
Na rua, as composições de Zé Ketti soam tão vivas quanto há cinco décadas, ganham novos significados e contornos nas vozes em coro. No salão, as performances podem até jogar luz para aspectos melódicos e harmônicos de sua escrita, mas pouco acrescentam no entendimento do poder de sua obra —são um apêndice que mais dispersa do que deixa coeso o retrato do músico.
Fica também um gostinho de que algumas fitas cassete deixadas por Zé Ketti, com composições, rascunhos e ideias dele, poderiam ser mais muito exploradas no filme. Elas têm trechos tocados em diferentes contextos e cenários, mas nunca são examinadas no meio de uma cena —o que foi um dos pontos fortes de “Andança”, o documentário sobre Beth Roble.
Ainda assim, não deixa de ser valioso ver a história de porquê ele adquiriu o chapéu “de malandro” que se tornou sua marca registrada, sua atuação na resguardo dos compositores, a relação com Monarco, Paulinho da Viola e Elton Medeiros, além de sua voz e imagem na tela recordando passagens de uma trajetória determinante para a música brasileira.
Também é preciso o retrato de sua preço para a Portela, onde é tratado com a reverência que merece o responsável de clássicos porquê “Inflamar as Velas”, “Máscara Negra”, “Malvadeza Durão” e “Mascarada”, além das músicas já citadas. Que seja o primeiro de outros trabalhos de pesquisa e memória de Zé Ketti, um arquiteto do samba e do Brasil.