Claudia Andujar tinha 13 anos quando se aproximou de Gyuri pela última vez.
Todos os dias, no mesmo horário, o procurava pelas ruas da Hungria, ansiosa para avistá-lo –quase sempre à intervalo.
Em junho de 1944, o garoto a convidou para uma volta no parque.
“Andamos emocionados, sem falar, olhando-nos furtivamente”, lembra a fotógrafa na introdução de seu livro “Marcados” (Cosac Naify).
“Eu sabia que um pouco importante estava acontecendo. Era o promanação do paixão.”
Com uma estrela de Davi pregada no peito, Gyuri lançava advertências sobre o transe ao volta –Andujar também morreria se os nazistas a flagrassem na companhia de um judeu.
Mas ela não recuou: “No término do passeio, recebi um ósculo tímido e sombrio, que unicamente tocou minha boca. Lembro-me de ter ficado com os lábios ardendo por horas seguidas”.
Dali a algumas semanas, o pai de Andujar seria executado em Auschwitz –e Gyuri também.
Sob a mira da Gestapo, a pequena fugiu em um trem de rebanho com direcção à Suíça, terreno natal de sua mãe.
“Esta é a veras que ela habita até hoje”, afirma Eduardo Brandão, curador da exposição “Claudia Andujar – Minha Vida em Dois Mundos”, que a Pinacoteca do Ceará promove até 9 de março de 2025.
“Ela é muito desconfiada e, ao mesmo tempo, muito positivo. A vida deu a ela essa capacidade de se relacionar com as diferenças, inclusive as mais perigosas”.
Andujar obteve reconhecimento internacional por sua luta em resguardo das populações indígenas, um ativismo conjugado com as centenas de fotografias que fez do povo yanomami, que viriam a se tornar seu trabalho mais célebre.
As obras expostas em Fortaleza, mas, desvelam facetas menos célebres de seu trabalho.
São duzentas fotografias de cunho jornalístico e experimental, retratando não somente ritos e costumes yanomamis, mas também o Brasil das pequenas e grandes cidades.
“Ela se guia pelo libido de um mundo mais justo, em uma procura que atravessa os mais diversos lugares –o preto e branco e a cor; o analógico e o do dedo; a floresta e a metrópole; a Europa e a América”, afirma Brandão.
Trata-se de um périplo generalidade a outras duas fotógrafas –a inglesa Maureen Bisilliat e a alemã Lux Vidal, que dividem com Andujar a exposição “Trajetórias Cruzadas”, em edital até 23 de fevereiro de 2025 no Núcleo MariAntonia, da Universidade de São Paulo (USP).
“As três nascem no início dos anos 1930, em território europeu, e viajam pelo mundo todo”, diz a curadora Sylvia Caiuby Novaes.
“São poliglotas, nunca perderam o sotaque, mas não possuem exatamente uma língua materna. Elas vivenciam a Segunda Guerra Mundial, e portanto se mudam para os Estados Unidos.”
Entender os brasileiros
A invitação de um tio paterno, Andujar chegou a Novidade York em 1946, depois uma temporada de dois anos na Suíça.
Até aquele momento, atendia pelo nome de batismo: Claudine Haas.
Mas, deprimida com as memórias do Sacrifício, ela alterou a própria identidade.
Na juventude, adotou o nome Claudia. No início da vida adulta, casou-se com um refugiado espanhol, Julio Andujar, tal qual sobrenome manteve depois o divórcio, para esconder as origens judaicas.
Em 1950, ela começou a pintar, sob possante influência do expressionismo abstrato.
Matriculou-se no curso de artes da universidade Hunter College, visitou inúmeros museus e trabalhou uma vez que guia na Organização das Nações Unidas (ONU) –mas não se integrou muito aos Estados Unidos.
“Eu gostava de passar horas no campo, nos parques, no cemitério com árvores, porque eram lugares quietos e solitários”, ela escreveria no jornal Ex em setembro de 1975.
“Passava horas em igrejas vazias, conversando sozinha. Me sentia só, na grande metrópole.”
Em junho de 1955, ao desenredar que a mãe se mudara para São Paulo junto a um namorado romeno, fez as malas e desembarcou na cidade. Aos 93 anos de idade, ela segue morando na capital paulista.
Ainda sem saber português, Andujar percorreria todo o território brasílio.
“Eu queria entender, saber o Brasil”, disse ela em entrevista ao Instituto Moreira Salles.
“Cá, me sentia em morada. Peguei uma máquina e, quando podia, eu fotografava. […] Acho que, com esse trabalho, esse esforço, eu estava procurando raízes.”
Entre 1956 e 1958, aconselhada pelo antropólogo Darcy Ribeiro, a artista fez uma série de viagens à Ilhota do Bananal, hoje pertencente ao Tocantins.
Naquele que seria seu primeiro projeto de fôlego, retratou com uma câmera de médio formato os karajás, povo indígena assente nas margens do rio Araguaia.
Ao oferecer o material para a revista O Cruzeiro, foi hostilizada pelos editores. Eles disseram, segundo relato dela: “Mulher cá não tem lugar. Mulher não pode ser fotógrafa”.
Em outubro de 1960, porém, o experiência ganhou as páginas da revista americana Life.
Nos Estados Unidos, a jovem era admirada por Edward Steichen, diretor do Museu de Arte Moderna de Novidade York (MoMA) e um dos mais importantes nomes da retrato no século 20.
Já nas galerias brasileiras, a retrato não tinha espaço, levando seus profissionais a buscarem refúgio na grande prensa.
Entretanto, o fotojornalismo de Andujar não se limitava à mera documentação cotidiana, afirma a sátira de arte Thais Rivitti.
“A obra dela traz uma série de ensinamentos da pintura”, afirma Rivitti à BBC News Brasil.
“Sua forma de usar luzes e texturas para conferir volume aos corpos, de modificar imagens no ateliê, com sobreposições, colagens e outras técnicas manuais, nos mostra alguém muito vigilante ao legado das vanguardas.”
Novaes também destaca que a pintura trouxe para Andujar “um siso de reparo”.
“Uma reparo cuidadosa e profunda, sucedida por uma sátira daquilo que foi observado. Por isso que suas fotografias são tão expressivas”, diz a curadora.
Uma mulher calada
Semelhante perspectiva orienta o experiência “Famílias Brasileiras”, produzido ao longo de dois anos.
O interesse pela veras mais prosaica levaria a fotógrafa a reprofundar na vida íntima de quatro clãs, em contextos distintos.
Em março de 1962, Andujar chegou ao Recôncavo Baiano, hospedando-se na Rancho Talento d’Chuva, datada do século 17.
O cenário próspero, impulsionado pelo cultivo de cacau, emoldura o sota da família branca, o ofício dos trabalhadores negros e um conjunto de estruturas físicas oriundas do pretérito escravista –a morada grande e a senzala permaneciam intactas.
Em maio do ano seguinte, a fotógrafa se dirigiu ao bairro do Jabaquara, na Zona Sul paulistana, rumo à mansão de 22 cômodos onde o procurador João Ranali, patrão do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), vivia com esposa, filhos e inúmeros bens de consumo.
Na cozinha, a família é rodeada por eletrodomésticos, refrigerantes e louças de vidro; na sala, três homens assistem a um programa de TV, repousados em móveis de design moderno.
No banheiro, um rapaz lê gibis com semblante tranquilo; não muito longe dali, debruçada sobre a mesa da despensa, uma senhora folheia o jornal.
Seis meses depois, Andujar aportou em um universo antagônico –uma vila caiçara em Ubatuba, litoral setentrião de São Paulo.
As imagens revelam a proa de um embarcação, ondas quebrando na superfície da chuva e montanhas que se erguem contra o firmamento.
O horizonte é vasto, mas o pescador e sua família permanecem boa secção do tempo confinados em uma casinha rústica, entre cordas, redes e panelas amassadas –sempre descalços.
A esposa, de cabelo trançado e vestido de chita, maneja a chaleira sobre um crivo de tecido, enquanto nuvens de vapor se elevam ao volta.
O varão, com o rosto oculto, ergue um bebê em direção à janela –única nascente de luminosidade no recinto.
Ao abandonarem a penumbra, os indivíduos se misturam com a areia, reduzidos a pequenas silhuetas à praia.
Por término, em 1964, a fotógrafa se instalou na residência de um médico católico em Diamantina, meio de Minas Gerais.
Durante quinze dias, acompanharia a rotina do patriarca no Hospital Nossa Senhora da Saúde, observando sua interação com gestantes e freiras, as andanças pelas ruas de arquitetura colonial, o fervor das comemorações cristãs e a opulência das igrejas barrocas.
No espaço doméstico, o cotidiano se funde com o sagrado –às voltas com imagens religiosas, sujeitos jogam cartas, uma mulher toca piano, dezenas de crianças correm para lá e para cá.
“Falei sobre a série com algumas dessas famílias, e os relatos se parecem bastante”, afirma Brandão, contando uma vez que essas pessoas viam Andujar.
“Todos se lembram de uma mulher subida, formosa, muito calada, que cruzava rios a nascido e fazia tirocínio o tempo todo. Eu, particularmente, a imagino transitando por esses núcleos uma vez que uma mariposa, sem nunca interferir na ação”.
Andujar queria publicar o experiência na Cláudia, revista feminina da Editora Abril –mas foi ignorada.
“Acho curiosa a teoria de família que circula pela mídia”, avalia Rivitti.
“Existe toda uma idealização, muito típica das propagandas de margarina, escondendo desigualdades que serão tensionadas por obras uma vez que essa. É muito sintomático que ela não tenha conseguido publicar as fotos na era”.
Estigmas
Andujar se tornaria mais conhecida a partir de 1967, graças a seu trabalho em outro veículo da Abril –a Veras, revista que marcou a prensa brasileira na segunda metade do século 20.
Debates políticos e mudanças comportamentais permeavam a traço editorial da revista, sempre atenta à controvérsia e ao ignoto.
Os fotógrafos eram livres para se entregar a abordagens visuais autônomas, ligadas ao texto somente pelo objeto em generalidade.
Andujar, por exemplo, trabalhava longe dos repórteres, em pautas dedicadas a setores estigmatizados da sociedade.
Naquele momento, vivia maritalmente com o fotógrafo afro-americano George Love, também colaborador da publicação.
“A Claudia me falou muito das andanças que eles tinham em Novidade York”, recorda-se Brandão.
“Ela nunca aderiu ao siso generalidade, à família tradicional. E ali, nos Estados Unidos, era branco de ofensas por estar caminhando na rua ao lado de um preto. Acho que ela sempre se sentiu marginalizada, e os ensaios para a Veras talvez representem sua procura por lugares mais confortáveis.”
Um desses cliques nos mostra uma prostituta com seios expostos, amamentando o fruto em alguma localidade não identificada.
Em outro flagrante, vemos uma stripper, mal disfarçando o próprio tédio, despir-se perante a plateia masculina de um pequeno teatro.
Internos definham a esmo no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, e gays marcam encontros furtivos pelas esquinas do Rio de Janeiro.
Em Minas Gerais, turbas desesperadas se enfileiram para que o médium Zé Arigó, suposto cirurgião místico, lhes introduza uma faca no olho.
Em um apartamento da capital paulista, um dependente químico cheira cocaína e injeta alucinógenos, mas Andujar não se basta com a imagem cinzenta dos apetrechos –mediante filtros, confere às seringas uma tonalidade lisérgica, oscilando entre o virente e o vermelho.
“A maioria do meu trabalho é em cor”, disse ao Jornal do Brasil em 9 de outubro de 1971.
“Se você fotografa em preto e branco, metade da sua originalidade está no laboratório. […] Porque foi você quem esteve lá, que sabe a luz, o lugar, o que você pretendeu expor quando estava operando.”
Com um par de máquinas sob o pescoço, ela embarcou na extinta ferrovia ligando o bairro do Brás, em São Paulo, a Salvador, na Bahia.
Em uma longa viagem de sete dias, foi acompanhada por dezenas de migrantes –desempregados e desesperançosos, eles recebiam do governo um pedaço de goiabada, dois pães adormecidos e uma passagem de volta para o Nordeste.
“É o trem do diabo”, anunciaria a Veras em maio de 1969.
Ao percorrer os vagões em movimento, Andujar se alternava entre as duas câmeras, registrando, ora em cores, ora em preto e branco, a perplexidade das crianças, o cansaço dos adultos, braços estendidos para fora das janelas, cabeças reclinadas sobre bancos de madeira.
“É uma série polêmica, pois aquelas pessoas não estavam exatamente na sua melhor forma para serem fotografadas”, observa Rivitti.
“Por outro lado, não deixa de ser um documento valioso para a gente entender a origem das políticas higienistas que São Paulo nunca deixou de gerar.”
Corpos na metrópole
Sônia, uma aspirante a padrão, regressou à Bahia em condições similares. Antes, visitara diversos estúdios na capital paulista.
Andujar foi a única a se interessar pela jovem de pele escura. Corria o ano de 1971. “Não demorei a chamá-la”, escreveu na Revista de Retrato.
“Sônia não sabia posar. Porém, era justamente disso que provinha seu portento simples. Os gestos e atitudes não profissionais revelaram uma sensualidade mansa, tranquila. Ela não parecia estar diante da câmera fotográfica, mas fora do mundo”.
Em procura de entrosamento, Andujar ofereceu-lhe os discos da sua coleção. Sônia rodou alguns na vitrola, afeiçoando-se à música “I Had a Dream”, gravada pelo americano John Sebastian.
A letra diz: “Tive um sonho na última noite / Que sonho lindo foi esse / Sonhei que estávamos todos muito / Felizes em uma terreno de Oz”.
Guiada pela melodia, a padrão assumia poses oníricas –ainda que não soubesse inglês.
Três horas se passaram, e Andujar gastou dez rolos de filme, cada qual com 36 poses.
As fotos, simples e diretas, prenunciavam uma tarefa mais complexa –reconstruir a imagem de Sônia em laboratório, com filtros e sobreposições.
“Às vezes, seu corpo ganha fisionomia escultórica. Em outros momentos, adquire formas chapadas”, analisa Rivitti.
“Hoje, com a banalização dos filtros no Instagram, a gente olha para esse trabalho sem entender recta a radicalidade de sua técnica. Mas, ali, a Claudia assumia um grande risco, operando de modo lento, artesanal.”
Andujar não se interessava mais por jornalismo. Estimulada pelo crescente reconhecimento da retrato no giro artístico brasílio, vinha direcionando sua curso aos museus –tornou-se professora do Museu de Artes de São Paulo (Masp), organizou diversas exposições e imergiu-se na pesquisa.
Nessa era, desenvolveu experiências quase clandestinas.
Em 1974, ela sobrevoaria São Paulo, munida de filmes infravermelhos –até portanto, um material de uso restrito ao Tropa, com venda controlada pela ditadura militar.
No regime dominador, inclusive, Andujar foi citada em dezenas de documentos confidenciais e chegou a ser expulsa de um território indígena em 1978, ao ser enquadrada pela Lei de Segurança Pátrio.
Os filmes infravermelhos têm propriedades fotoquímicas que permitem conquistar ondas invisíveis a olho nu, acentuando detalhes ocultos e distorcendo nossa percepção cromática.
Uma atmosfera opressiva se instaura nas imagens que Andujar realiza com auxílio da tecnologia.
Há um soberania do azul e do cinza, em uma perspectiva aérea que ressalta o caráter simétrico dos edifícios e a escassez de vegetação.
Árvores são raras, brotando com tonalidade púrpura entre blocos de concreto. A presença humana simplesmente inexiste.
Abordagem oposta marca um experiência produzido na rua Direita, logradouro altamente movimentado do meio paulistano.
Com a câmera rente ao asfalto, a fotógrafa engrandece os transeuntes –rodeados por letreiros garrafais, eles se esbarram pela passeio, absorvidos em suas próprias rotinas.
São indivíduos solitários, tal uma vez que a dupla que estampa uma retrato misteriosa, identificável no tempo e no espaço graças ao título “Brasília, 1965”. Seu contexto é uma incógnita.
“Tem um descampado enorme, por onde descem uns homens pequenininhos”, descreve Brandão.
“Um dos caras está de terno, eles andam e conversam. Não tem prédios, zero de arquitetura, um único [Oscar] Niemeyer sequer. É só nuvem e pedra.”
O curador adoraria saber o que houve por ali, mas não conseguiu desenredar.
“A Claudia é uma mulher que não dá trela para o pretérito. Só o que importa é o horizonte”, diz Brandão.
“Ela fica louca de exaltação quando descobre uma novidade técnica de sentimento. Mas se você perguntar o que ela foi fazer lá no Região Federalista, ela finge que nem escuta.”
