Francis Bacon Reduz O Homem à Carne Em Mostra No

Francis Bacon reduz o homem à carne em mostra no Masp – 18/06/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

O varão nu se debruça sobre a pia, os gestos um borrão, porquê sua própria pele deslavada, transparente, a mesocarpo feito fantasma. Seu corpo é a memória animalesca do corpo, um espectro quadrúpede, braços e pernas tombados em direção ao soalho, num cenário que desvanece. Em volta, linhas finas delimitam o espaço, uma caixa cênica, sintético porquê o teatro, já com as cortinas que separam a ação entre dentro e fora do espetáculo. Ele se lava.

O quadro de Francis Bacon que abre a poderosa mostra do artista agora em papeleta no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, estabelece o cenário de toda essa angústia, sempre uma caixa, sempre uma alcova, um quarto só, testemunha da dor, do gozo, da morticínio. O retratado em seu “Man at a Washbasin”, ou varão em um lavatório, tela dos anos 1950, expia a própria culpa.

Bacon repetiu essa estratégia ao longo de décadas, a figura no meio, o cenário ao mesmo tempo rígido e transparente ao volta. É uma camisa de força imaginária, a domesticidade castradora de interiores burgueses, ou interiores às vezes só esboçados, em contraste duro com a selvageria dentro deles, o varão, quase sempre o varão, porquê fera, ou homens porquê feras que se devoram.

Esse recorte da trajetória do britânico tem a zero sutil missão de direcionar o olhar para a raiz queer, ou gay mesmo, de seu trabalho, embora Bacon tenha sido mais do que um artista que retratou numa das vertentes de sua produção plástica o paixão entre homens.

Em muitas ocasiões, estamos longe do paixão, aliás, e mais perto de uma força que nos faz destruir uns aos outros, o sexo que se assemelha a um ringue de boxe, um espaço também cingido pelas quatro linhas de um quadrângulo.

São os lutadores e os banhistas, figuras recorrentes da pintura de linhagem homoerótica ao longo da história da arte, que se chocam no retrato desse varão que se lava, a rinha de recontro ao volta e a salvamento na chuva que purifica, talvez daí os tons frios, cadavéricos e escuros dessa tela.

O sexo se pronuncia só na nudez do rapaz, mas a pulsão de vida de um encontro consanguíneo se esvai pelo ralo, da mesma forma que na tela ao lado, “Study of a Nude”, ou estudo de um nu, outro varão despido se alonga para submergir no zero, um gesto de liberdade suicida.

Dez anos depois de fazer esses trabalhos, Bacon construiu uma estrutura semelhante noutra tela, a caixa transparente envolta em cortinas, mas com um varão vestido no meio da constituição, vestido até demais. A figura de terno, o rosto irreconhecível, mais um fantasma lapidado no gestual de pinceladas rápidas e violentas, está sentada no balcão de um bar, sozinha, olhando para o zero.

É dos mais belos retratos da solidão, de tantos outros, que habitam a mostra desse artista rabi em arquitetar cenas em suspenso, quase fotogramas de um filme perdido.

Seus flagras sugerem o momento antes ou depois de uma explosão, a sofreguidão do engravatado que antecede um encontro ilegal ou a vã tentativa do outro de esfregar da pele as marcas do sexo.

Bacon exerceu a sua sexualidade na contramão das normas da idade, tendo feito grande segmento de seus trabalhos num momento em que ser homossexual era transgressão no Reino Uno, o que talvez explique, seja em chave de denúncia, seja porquê forma de protesto, suas figuras quase sempre solitárias, réus confessos num tribunal insólito.

Mas eles gritam. E deixam ver os dentes, uns afiados porquê os das carrancas, figuras vampirescas, outros retos e alinhados formando a arcada dentária do varão generalidade.

Seus muitos retratados em projecto mais fechado, composições derivadas da figura de pose estática, coberta em tecido brilhoso do papa Inocêncio 10º, pintura do século 17 de Diego Velázquez, motivo de quase preocupação para o artista, estão ali esgoelando.

Vemos os seus dentes brancos contra os fundos escuros, os ossos que escapam à mesocarpo, a arquitetura crua da musculatura, da mesma forma que a pose se restringe firme aos limites da sala que é uma quartinho, do trono do pontífice que é também uma cadeira elétrica.

Um desses homens da série inspirada em Velázquez, que não está na mostra do Masp, organizada por Adriano Pedrosa, é retratado esquelético, só o branco dos ossos, diante de carcaças de vaca ainda vermelho sangue. Francis Bacon enxergava uma venustidade insuspeitada nos açougues —e ele não foi o primeiro.

Sua relação com a mesocarpo, literal —na dez de 1950, ele chegou a posar sem camisa com os sobras de um bicho partido ao meio para um retrato na revista Vogue—, está ancorada em figuras da história da arte que também viram nesses animais eviscerados uma natureza morta que refletia a nossa frágil quesito humana, de Rembrandt a Chaim Soutine.

No caso, tão humana quanto bicho. Bacon, nesse ponto, também aproximou a nossa mesocarpo da deles. Observador vigilante da obra do britânico Eadweard Muybridge, um dos pioneiros a dissecar o movimento humano em sequências fotográficas ainda no século 19, usando modelos homens sempre nus, Bacon despiu em mais uma categoria as poses dos lutadores, desbastando seu verniz científico de origem para mostrar o inextricável de músculos em cena porquê uma cópula feroz.

Não espanta que se desenvolveram em paralelo na obra do artista os seus chamados estudos para crucificações, que mais lembram corpos mutilados, costelas e colunas vertebrais à mostra, e monstros que são só dentes, massas de mesocarpo retorcida que mordem, vorazes, o zero, o espaço improdutivo da jaula vazia.

O artista sempre habitou esse lugar controlado, a estádio das aparências daqueles seus homens solitários de terno, estando consciente da violência que pode a qualquer momento transfixar frestas no assoalho, trincar os azulejos.

Bacon trata dessa fúria enjaulada, vontades reprimidas. Suas figuras são prisioneiros, os condenados de sangue quente que Piranesi mostrou só de longe em seus cárceres imaginários, vultos insignificantes engolidos pelas escadarias que se cruzam infinitas.

Ou mesmo a poça de sangue no soalho de uma das famosas pinturas de saunas de Adriana Varejão, outra artista afeita à exuberância da mesocarpo, que arquitetou labirintos azulejados, grande segmento deles jogos geométricos assépticos, com a exceção de um, que mostra os sobras rubros de um ato de paixão ou violência, ou as duas coisas ao mesmo tempo.

Os interiores nas pinturas de Bacon, por outro lado, são mais sintéticos e teatrais, brechtianos. Se há jaulas delineadas em todo lugar, não existe a quarta parede, e o meio da constituição é sempre tomado por uma mesa, uma leito, um sofá ou um esquálido palco de madeira, o tablado que é palco de um transgressão, de uma transa, de uma overdose. É o espaço agônico de toda sorte de espasmo.

Isso é nítido num dos trabalhos mais destoantes da mostra, o único interno vazio, a não ser pela luminária de traços minimalistas à direita do quadro. Toda a constituição de “Jet of Water”, ou jato d’chuva, tela da dez de 1980 que é segmento de uma longa série de trabalhos semelhantes, é atravessada por uma mancha esbranquiçada. Essa descarga, uma explosão próxima da ejaculação, rasga o cenário ao meio na oblíquo, formando dois triângulos que se equilibram um sobre o outro, distorcendo a noção de horizonte.

Bacon, nessa tela, desafia a arquitetura, profana a própria jaula esquadrinhada à sublimidade. Lembra uma tela clássica de outro britânico umas décadas mais jovem, “A Bigger Splash”, de David Hockney, que retrata a piscina de uma moradia modernista em Los Angeles, onde viveu, sem nenhum vestígio humano, a não ser o esternutação d’chuva numa vasta superfície azul estática. Seu amante acabava de dar um mergulho, mas só vemos o rastro que ficou para trás, da mesma forma que o jato abala a rigidez da obra de Bacon.

É de vertigem que eles falam. Bacon chegou a mostrar isso na própria face. Em retrato detrás de retrato em que o cenário já se desfez, seu rosto, às vezes intercalado com o de qualquer amante, emerge de uma espessa volume negra ao fundo, uma visão que irrompe do vazio, em zero nítido. É porquê se víssemos todos eles debaixo d’chuva, num despenhadeiro submarino, sempre em pares ou trios, a teoria de sequência cinematográfica e de estudo do movimento, que marca sua obra.

Não há momento plácido, no entanto, todos eles sufocam. São semblantes mutilados vistos em série, com borrões que atravessam a rostro —narizes, bocas e olhos em desarranjo, porquê se plasmados à revelia na tela, sempre em desespero. Bacon nos mostra no próprio rosto as marcas da violência insondável da solidão.

Folha

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