Do Santo Amaro, no Rio de Janeiro, ao Helipa, em São Paulo, passando pela Inestan, em Belo Horizonte, até o Clube da Compesa, em Recife. Em qualquer dança funk do Brasil, hoje, é provável que a resposta à pergunta “Anitta é funkeira?” seja “não”.
Há muito que Anitta largou o MC, uma vez que se o título lhe prendesse aos palcos e DVDs da Furacão 2000. Foi, viu e venceu na gringa. E agora volta ao início com seu “Funk Generation”, que vacila entre ousadia e monotonia.
Hoje, Anitta é uma artista internacional. Tem um show memorável no Coachella 2023, flana em tapetes vermelhos com a mesma desenvoltura com que dança, tece conexões pan-americanas e europeias: a presença de Anitta no showbiz global é indiscutível.
Se “Kisses”, de 2019, fez da jovem de Honório Gurgel convidada de honra de premiações internacionais e “Versions of Me” assegurou seu lugar em meio à vaga latina do pop, “Funk Generation” é seu passo avante no mundo —com a música que ela traz de início.
O disco, que tem 15 faixas e um time de produtores repleto de brasileiros, faz o combinado: é um disco de funk. Por isso, quando Anitta dá vazão ao devir do gênero, sua agressividade e sua lascívia, sua engenhosidade e suas invencionices, o álbum dá manifesto —chega até a se conectar com outras músicas de solo e paredão da América Latina. Quando tenta domar o funk, porém, Anitta torna opaco o fulgor de seu trabalho. O disco patina com canções esquecíveis.
“Funk Generation” se sustenta em três escolas do funk: a primeira geração, que surge no álbum com a batida Volt Mix, entre eletro de Los Angeles e Miami bass —deixando de lado o latin freestyle, também fundamental à gênese funkeira—; a geração da viradela dos 1990 para o 2000, situada entre as batidas feitas com a boca e o tamborzão; e a geração atual, entre a violência seca do surdo e o ataque agudo da caixa —que fazem o som típico do funk, “tum-tcha-tchá tum-tchá”).
Anitta não menospreza seu ouvinte. Ela e seu time encaixam as batidas e as texturas dessas diferentes gerações uma vez que um quebra-cabeça sem gabarito. Em “Grip”, a artista brinca com a levada que ficou famosa em “Baby Got Back”, do rapper Sir Mix-A-Lot. Na música, ela canta sobre um beat que tem os mesmos gemidos e traçado de “Aquecimento Abre as Perna e Relaxa”, além da simetria que lembra “Popozuda Rock ‘N’ Roll”, do grupo DeFalla. Um prato cuja avaliação fica a sabor do freguês.
Esse jogo da memória aos ouvidos, que se embrenha no linguagem do funk, estende-se. Quando acerta, o álbum não soa nostálgico dos tempos idos nem tampouco pastiche dos tempos vividos. O interlúdio “Savage Funk”, lisura da seção mais interessante do disco, mostra uma Anitta tão afrontosa quanto as batidas maximalistas que a acompanham. “Cria de Favela” acentua esse lado escabroso: Anitta rima mais do que canta, explora seu lado MC de dança num momento em que os MCs mais famosos do Brasil fazem mais show que sarau.
“Puta Rosto” mantém esse ímpeto de usar o funk uma vez que vasta plataforma de geração que é. Anitta consegue recrear com os versos e retrair o dança nas diferentes seções da tira, dessa vez acompanhada pelo beat divulgado uma vez que “Tá Tá Tá”. “Sabana” eleva a aposta e leva. Ecoando o seco e grave funk de Belo Horizonte, abrindo espaço para o violino clássico de “Já É Sensação” (ou “Thong Song”), Anitta e seu time não deixam obrigação aos primeiros movimentos experimentais de artistas uma vez que Cofre a Sophie.
As sementes que Anitta lançou na região do Grande Caribe desde seu último álbum renderam frutos. “Double Team” é funk na batida e reggaeton na levada, com a participação de Bad Gyal e Brray —expoentes da flanco mais soturna do gênero. “Aceita” é um intercepção na medida entre dembow e funk, conexão Santo Domingo e Rio de Janeiro, que novamente coloca Anitta entre o esquina e a rima, falas diferentes.
A destreza que a artista tem com línguas estrangeiras, um pouco sempre festejado nas redes sociais, é necessário ao disco. Anitta pula entre seu carioquês, o espanhol caribenho e o inglês norte-americano numa mimese do que faz sucesso hoje na música. Já nas letras, a habilidade é limitada. “Meme” poderia ser do último ou do terceiro disco. No seu lirismo, Anitta evoca uma mulher dona de si, mas não se lança. Soa repetitiva. O tema das músicas não é desculpa: MCs de funk falam de sarau e sexo há anos sem parar de se renovar.
“Love in Common” ressalta esse vista junto da maior fragilidade do álbum: a tentativa de Anitta de adequar o funk para formas do pop norte-americano. A tira a tira do posto de MC e a relega a um papel inofensivo, uma voz em meio a tantos projetos de diva pop. Que pese sua paixão pelas melodias, coisa que sempre demonstrou, há muitas formas de encarar a cantiga —e o Brasil está pleno delas, muito mais saborosas que os sons de playlist feitos à exaustão nos Estados Unidos.
Em “Fria” fica evidente uma vez mais esse funk às avessas somado a um pavor do risco. Esse temor soa até em tentativas de refazer sucessos: “Joga Pra Lua”, lançada há alguns meses, parece querer trilhar o mesmo caminho de “Tá OK” —ambas são assinadas por Dennis DJ, aquela tem 140 milhões de visualizações no YouTube, esta tem 20 milhões. “Funk Rave” emula a ingresso do EDM no funk de São Paulo, tendência que data ao menos de três anos detrás.
Entre muito que podia ser e tudo o que foi, “Funk Generation” terá seus êxitos entre o público internacional e entre o público brasiliano. Já será um feito. “Ahi”, com Sam Smith, exemplifica esse lugar: Anitta canta uma vez que os melhores MCs do funk 150 e entrega um refrão peganhento, um beat que faz até o falsete do britânico dançar. De indumentária, o álbum apresenta o funk para o ouvido do Setentrião Global. Cabe desenredar se isso será suficiente para atrair o quantia de lá na turnê da cantora na Europa e nos EUA.
Se Anitta é uma artista internacional, precisa ser encarada uma vez que tal. Se é funkeira, também. Alguns nomes com quem ela esbarra nos grandes corredores de festivais do mundo tem enxergado o pop para além do substancial —de Beyoncé e seu suposto disco tríptico até Taylor Swift, ainda que sempre falando de si.
Já artistas de funk têm oferecido provas incontestes do seu poder de queimação criativo e nunca o gênero foi tão popular no mundo. Anitta extrapolou a fórmula em “Funk Generation”, foi às suas origens e voltou, mas poderia ter ido além. “Lose Ya Breath”, tira que abre o disco, seria incrível se tivesse sido lançada em 2003, ali entre Deize Tigrona com “Injeção” e M.I.A com “Bucky Done Gun”. Foi o horizonte, hoje é no supremo o presente.