Fúria, Narcisismo E Ofensas: O Estranho Mundo Dos Comentários

Fúria, narcisismo e ofensas: o estranho mundo dos comentários – 10/12/2024 – Wilson Gomes

Celebridades Cultura

Há uma máxima destes novos tempos cuja inobservância inevitavelmente aumenta a taxa de infelicidade de quem ganha a vida publicando em jornais, revistas ou qualquer veículo de informação online: não leia os comentários. É um princípio que há quase 25 anos tenta ajudar aqueles que se dedicam a análises, críticas ou, simplesmente, uma vez que se diz hoje, à produção de conteúdos para consumo do dedo, a preservar qualquer contentamento e autoestima.

Essa máxima vale para qualquer ponto, mas mormente para os que frequentemente dividem opiniões: futebol, política, religião, moral, celebridades ou até se um ignoto deveria ceder seu lugar na janela do avião. Em resumo, a quase tudo, pois no verão de 2024 não há coisa que se ame mais do que odiar.

O crítico —seja da mídia tradicional ou dos novos canais digitais— publica sua estudo e hesita: de um lado, deseja escoltar a repercussão de seu trabalho; de outro, sabe que não deve olhar nos olhos da Medusa dos comentários. Se é sábio, contenta-se com as métricas ou com o retorno de interlocutores de crédito. Perfurar a seção de comentários, porém, é reservado aos que aceitam o risco de deslindar que ilustres desconhecidos tiraram minutos de suas vidas para provar o quanto o consideram infame, estúpido, ignorante, incompetente, mal-intencionado, mal-parecido, rente e truão —além de mais uma dúzia de predicados ofensivos que podem variar conforme o sexo, idade, cor, origem familiar ou geográfica e religião do responsável da estudo.

Mulheres, por exemplo, invariavelmente são atacadas com insultos que combinam alusões à promiscuidade e à figura, temperados com todas as notas da sinfonia da misoginia. Ninguém é poupado. A regra é melindrar, e o comentarista buscará em seu arsenal de ofensas os golpes que julga mais certeiros contra aquele “tipo de pessoa” a quem se dirige.

Quando estudante, cursei uma disciplina chamada “antropologia do insulto”, que ainda me ajuda a compreender o comportamento em ambientes digitais. Uma ofensa bem-sucedida precisa ser calibrada para atingir exatamente onde dói. Principalmente porque ela precisa ser feita em público, uma vez que a humilhação diante de um coletivo é secção do sofrimento que se pretende infligir.

Toda ofensa é uma tentativa de degradação, um rebaixamento moral ou cognitivo. Frequentemente isso ocorre pela desumanização do outro (chamá-lo de néscio, cavalo, ofídio, penosa, cachorro etc.), pela atribuição de perversidades (fascista, genocida, antissemita, racista) ou pela denúncia de imoralidade (vendido, conluiado, falso, arrogante, conspirador).

Mas de onde vem essa paixão pela ofensa fácil a pessoas que não conhecemos, que nunca nos prejudicaram, por ideias que deliberadamente escolhemos consumir? E por que me sinto empurrado a seguir perfis, ouvir comentaristas ou ler colunistas cujas visões sei que me irritam profundamente? Unicamente para odiá-los de perto?

As disciplinas que estudam comportamentos e atitudes online ainda têm muito a prosseguir para desvendar essas dinâmicas digitais. Radicalização política, desintermediação jornalística, incentivos à agressividade por secção de grupos e plataformas, uma novidade era de intolerância, a cultura do cancelamento, a crise epistêmica que substitui a crédito em especialistas por lealdade a líderes tribais, a exibição de virtudes e o narcisismo exacerbado —todos esses conceitos são ferramentas para tentar entender esse estranho mundo novo. Um mundo em que as pessoas buscam informação e estudo, mas, em vez de usá-las para explicação pessoal —tornando-se mais flexíveis e abertas—, convertem-nas em combustível para a própria raiva.

Essa fúria, por sua vez, alimenta o glosa impulsivo e hostil, disparado uma vez que uma voadora, pé no peito do interlocutor, para puni-lo pelo intolerável delito de não confirmar as minhas lindas convicções e de se atrever a tutorar pontos de vista diferentes dos meus. Por que faria tal coisa, enfim, se não por seus inúmeros defeitos morais e intelectuais, que me sinto empurrado a expor uma vez que a mais cristalina verdade, ainda que ele os receba uma vez que insultos?

Ao mesmo tempo, ao redigir o glosa, não exclusivamente denuncio publicamente o quão néscio e mal-intencionado é o meu interlocutor, mas também proclamo o quanto sou, por contraste, inteligente, moralmente superior, preciso e verdadeiro.

E, uma vez que se não bastasse, deixo simples que possuo a coragem daqueles que fazem questão de combater em público a imoralidade, a estupidez e o erro.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul inferior.

Folha

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *