Geometria de artistas brasileiros abala casarão em paris 06/06/2025

Geometria de artistas brasileiros abala casarão em Paris – 06/06/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Todo dia, num momento exato desta primavera parisiense, os raios de sol que entram pela janela no cimalha da galeria iluminam o triângulo dourado de uma tela de Mira Schendel, e as linhas de luz e o traçado da artista parecem se multiplicar no espaço, realçando as formas de outros trabalhos ali.

É uma vez que se a estátua de Lygia Clark que repousa sobre a mesa metálica, ou as formas geométricas nas obras de Aluísio Carvão, Lygia Pape e Hélio Oiticica ao longo da parede ao lado, de repente se despertassem das sombras, das trevas a uma aura radiante, uma geometria de ângulos alicerçados nos trópicos deslocada para o outro lado do Atlântico.

O jogo de luzes pode ser involuntário, mas faz sentido no contexto, dentro do salão da lar La Roche, desenhada por Le Corbusier. O rabino do modernismo, na primeira vez que pisou no Brasil, no termo da dez de 1930, mesma idade da construção desta lar no endinheirado 16º arrondissement de Paris, disse que uma novidade arquitetura nasceria da luz que ele portanto descobria naquela latitude.

É inegável, aliás, o seu próprio papel na propulsão desses lances puristas entre artistas e arquitetos do outro lado do mundo. O modernista ancorou as bases de seu chamado “esprit nouveau”, ou novo espírito construtivo, na mais simples e despojada geometria —ângulos retos, vegetais livres, janelas que rasgam paredes e fachadas para riscar amplíssimos horizontes, um mundo novo descortinado para quem vê de dentro e um palácio sedento, atravessado pela luz, para quem vê de fora.

Do lado de fora, a mostra que agora ocupa a antiga lar de um banqueiro e colecionador de arte já se anuncia nas formas do banco Marquesa visto através da janela, estampa de Oscar Niemeyer com a filha Anna Maria feito na idade de seu exílio em Paris, na ditadura militar. Seus traços vermelhos, numa rara edição da peça, dão um toque de sangue ao conjunto de tons suaves da construção.

Le Corbusier também não se limitou ao branco na geração da lar La Roche. As paredes e luminárias são tingidas de azul, amarelo, virente e ocre, numa paleta mais tímida que realça os planos, as curvas e os contornos do espaço.

Os artistas escalados para esta “Aberto4”, a primeira edição fora do Brasil de uma série de sinais organizadas por Filipe Assis que leva peças de grosso calibre a construções modernistas que entraram para a história, dialogam com essas cores em seus trabalhos —às vezes em sintonia, caso de Mira Schendel, às vezes na contramão, caso de Luiz Zerbini, na ingresso.

Na pintura do paulistano mostrada ao lado de uma tela de Le Corbusier, os traços brutalistas do prédio Holiday, no Recife, são atravessados por rajadas de cor vibrantes, um Carnaval lisérgico que destrona a rijeza daqueles ângulos retos e chacoalha as estruturas.

Le Corbusier, impressionado pelo Brasil, em peculiar as construções improvisadas nas favelas do Rio de Janeiro, também dissolveu a solidez de seus traços. Suas novas formas orgânicas e manchas vibrantes de cor são visíveis nas obras mostradas na lar.

Os desenhos de Roberto Burle Marx para os jardins do vetusto Ministério da Ensino e Saúde, que o franco-suíço idealizou junto com um time de brasileiros que escalou também Oscar Niemeyer para a construção desse marco moderno junto à orla carioca, espelham esse visual.

No fundo, é um encontro de vertentes de uma vanguarda que se desdobrou em novas ondas estéticas. Se a conversa começou lá detrás com Le Corbusier, Niemeyer e Burle Marx, a reação de concretistas e neoconcretistas mais tarde é mais do que evidente agora.

Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, todos na exposição parisiense, mostram uma vez que os princípios modernos foram devorados pelo corpo, uma geometria colada à mesocarpo, construções que não renunciam ao toque, ao calor, ao suor.

Em seu “Metaesquema”, Oiticica ensaia os primeiros movimentos de formas geométricas que mais tarde saltariam da superfície da tela para o dança de Carnaval, a estátua movimentada pelo corpo que é o “Parangolé”, a arquitetura do acidente e do precário que é a sua monumental “Tropicália”.

Diante dessa mostra, impossível não lembrar a mítica instalação da dez de 1960 que já dizia, na ingresso de suas paredes tortas, que a “pureza é um mito”, à luz da evolução dos próprios traços de Le Corbusier, sem incerteza transformados por sua experiência tropical.

O “Bicho” de Lygia Clark também desafia toda e qualquer rigidez. É uma estátua de planos metálicos articulados que formam uma pessoa mutante, capaz de mudar de formato, posição e atitude no contato com as mãos, a sua teoria de uma geometria tátil, refém do espaço ao volta uma vez que pode ser a cartilagem humana.

Nesse sentido, outras esculturas, de Anna Maria Maiolino, Erika Verzutti, Liuba Wolf, Maria Martins e Sergio Camargo, ampliam esse pensamento com a mesma vontade de sedução pelo toque e novas geometrias insuspeitadas.

Maiolino tem na mostra suas cobrinhas de greda alvíssima, Camargo tem um relevo feito com seus célebres toquinhos de madeira, Verzutti cria incisões e cortes de precisão milimétrica nas jacas que esculpe na pedra, um motivo recorrente em seu trabalho, Martins faz esvoaçar os contornos de um de seus monstros tropicais presos ao pedestal e Wolf mostra seus pássaros pretos de traços ao mesmo tempo leves e pesadíssimos uma vez que chumbo.

O que seria uma caixa-forte do modernismo mais duro de Le Corbusier acaba atravessada por ondas de cor e formas orgânicas também nas pinturas. Luisa Matsushita revisita as cores da lar numa tela e Marina Perez Simão constrói um horizonte movente de tons intensos e brilhantes.

Tudo, no termo, parece encontrar o seu quina numa lar tão ousada quanto simples, de planos duros entrecortados por terraços e vista generosa para a cidade. É o modernismo atravessado pela cor e pela fúria que tanto rechaçou.

O jornalista viajou a invitação da ‘Aberto4’

Folha

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