“Olhem! Lá no firmamento! É um pássaro!”, berra um varão na rua. “É um avião!”, berra outro. Uma senhorinha interrompe os dois: “Vocês berram e apontam assim toda vez que passa um pássaro ou um avião? O que é que tem de tão privativo?”
Surge um terceiro sujeito, que reclama com a senhorinha: “Cala a boca, dona! Era a minha deixa pra gritar feito idiota: ‘Não! É o Wonder Wart-Hog!’ É tudo showbiz, entendeu?”
O quadrinho é de 1962. Gilbert Shelton tinha 22 anos e editava um revista de humor underground na Universidade do Texas quando publicou a primeira história do Wonder Wart-Hog. Ela abre a coletânea que acaba de transpor no Brasil do “melhor dos super-heróis”, uma vez que diz a envoltório.
Conforme o narrador da HQ, o “Javali-Maravilha” ou “Porco-de-Verrugas-Maravilha é “um javali nascido e criado nestas bandas, mais inteligente do que a maioria de sua espécie e que combate o transgressão pela única razão sensata para tanto…”
Quem completa a frase é o próprio Wart-Hog: “Tem grana na jogada, veio!”
Notabilidade e mulheres também motivam o não herói. Na primeira história, em seguida, detém assaltantes de banco e fica com o quantia do roubo.
Quando não está combatendo/corroborando o transgressão, ele disfarça o venta, as orelhas e os pelos se vestindo de humano. O javali –para ser mais exato, um facócero, primo do javali que habita a África subsaariana– vira Philbert Desanex, pacato funcionário de um grande jornal onde sempre tem alguém gritando “parem as rotativas!” porque elas fazem muito fragor ou porque alguém caiu no meio das máquinas.
O trabalho na prelo também leva Desanex/Wart-Hog a escoltar policiais corruptos, políticos sacanas e a sociedade degradada em universal. Fruto do underground dos anos 60, o deboche dos super-heróis tem uma veia sátira e contracultural poderoso.
Em entrevista à Folha, Shelton diz que bolou seu “Javali de Aço” quando estava caminhando pela Sexta Avenida de Novidade York, durante um breve período que morou na cidade.
“A teoria simplesmente me surgiu”, ele escreve de próprio punho. As perguntas da entrevista foram enviadas por e-mail e as respostas –curtas, muito curtas– foram escritas com a ortografia sheltoniana, depois digitalizadas e enviadas. Shelton está com 84 anos e andava com problemas com a internet.
Ele leu super-heróis quando rapaz? “Superman e Batman. Mas fui mais influenciado pelas tiras de jornal: ‘Dick Tracy’, ‘Ferdinando’, ‘Jack do Espaço’.”
Cresceu com javalis? “Eu tinha um léxico que mostrava um ‘wart-hog’. Não tem ‘wart-hogs’ nas Américas!”
A revista Mad, apontada por muitos da geração de Shelton uma vez que a leitura que os levou a pensar de forma subversiva, teve o mesmo efeito sobre ele. Robert Crumb, Art Spiegelman e Alan Moore citam “Superduperman”, a paródia do Superman que saiu na edição três, uma vez que uma explosão que mudou todos os gibis de heróis que haviam lido até logo, os que leriam dali em diante e, é óbvio, os que eles mesmos iam produzir.
“Foi exatamente naquele momento”, Shelton escreve, confirmando que teve a mesma experiência dos colegas. “Na Mad Comics número três. Eu tinha 12 anos.”
Os Freak Brothers, os hippies bigodudos que ele criou em fins da dezena de 1960, acabariam fazendo mais sucesso que Wonder Wart-Hog. Porém, os editores continuavam pedindo mais histórias do “bicho nojento” –palavras do responsável–, que o acompanhou ao longo da curso tanto quanto os irmãos maconheiros —irmãos de grama, não de sangue.
Curso que não ficou só nos Estados Unidos. Depois de visitas à Europa nos anos 1970 e 1980, e de sentir a receptividade dos leitores e editores franceses e espanhóis, Shelton e esposa –a agente literária Lora Fountain– resolveram homiziar. Levante ano completam 40 anos de residência em Paris.
Ele não parece muito interessado em falar de política, seja do seu país natal ou do país de adoção. Uma HQ do Wonder Wart-Hog de hoje poderia zoar com Trump? Com Biden? Ou com Emmanuel Macron e Jordan Bardella?
“Acho que eles vão ser esquecidos em pouco tempo. Quem ainda lembra de Richard Nixon?”
E o Javali-Maravilha ia mexer com assuntos espinhosos, uma vez que Israel? Direitos das mulheres? Controle de armas de queimação? A ultradireita? “Todos esses”, Shelton escreve. “Ao mesmo tempo.”
Ele é o mesmo Shelton que assinou a envoltório de Radical America Komiks, uma publicação do grupo Estudantes por uma Sociedade Democrática em 1969. A envoltório está na coleção de Wonder Wart-Hog. O que ele considera radical nos Estados Unidos de hoje? “Donald Trump, acho eu.”
Uma vez que já foi dito, as respostas à entrevista foram curtas, muito curtas.
Shelton e Robert Crumb estiveram no Brasil em 2010 para a Sarau Literária Internacional de Paraty e uma rápida passagem por São Paulo. As mesas de debate e as sessões de autógrafo com os dois viraram lendas, um momento privativo de fãs brasileiros com dois ícones do underground. Ele tem boas memórias dessa visitante ao Brasil?
“Uma repasto no restaurante de uma ilhéu em Paraty.”
Foi mais ou menos por essa estação que ele deu sua última entrevista à prelo brasileira. Quando questionado sobre conselhos para novos quadrinistas, disse: “Arrume serviço. Arrume um serviço de dia e escreva quadrinhos à noite. Porque é quase impossível conseguir viver de quadrinhos até você ter reputação.”
Octogenário, jubilado da longa curso nos quadrinhos, com fãs em todas as partes do mundo, Shelton ainda é publicado continuamente –e apropriado. Freak Brothers virou série de animação nesta dezena. O seriado já teve duas temporadas, disponíveis no Brasil no meato de streaming Globoplay. Wonder Wart-Hog ainda não teve a mesma sorte em outras mídias, ele diz. Mesmo sendo essa referência, ele mantém o juízo aos jovens que querem fazer quadrinhos?
É a resposta que ele dá em maiúsculas: “Yes”.