Gilberto Gil condensou sua trajetória, uma das maiores da música brasileira em todos os tempos, no show que deu o pontapé inicial de sua turnê de despedida dos palcos. A primeira apresentação de “Tempo Rei”, que percorre o Brasil ao longo deste ano, aconteceu no estádio Manancial Novidade, em Salvador.
Mais de 40 milénio pessoas lotaram o espaço na noite deste sábado (15), em seguida os ingressos esgotarem horas antes do show estrear. Foi uma recepção de gala, à fundura de um dos mais ilustres filhos desta terreno, que atrasou murado de meia hora para subir ao palco para quando os espaços na plateia estivessem todos preenchidos.
Ele começou com “Palco”, música que fez em 1980 porquê forma de se despedir da curso, mas que acabou a reabilitando. Emendou “Margem Um” e “Tempo Rei”, a reflexão sobre a ação transformadora do tempo que é tema da excursão derradeira.
Gil disse que o show era sua despedida dos grandes palcos, do que “eu venho fazendo há mais de 60 anos”. “Estarmos cá juntos é o motivo de ter me devotado toda a curso”, ele afirmou, antes de retirar um trecho de “Cá e Agora”, cantiga de 1977.
“O melhor lugar do mundo é cá e agora” diz a música, frase das filosofias orientais que regem Gil, e recado adequado à ocasião. Mais que um resgate de um pretérito obsoleto, o show mostrou que a obra do tropicalista segue relevante e capaz de enternecer —mais ainda ali, e naquele momento.
Confirmou essa sensação o veste de que Gil, aos 82 anos, segue fisicamente capaz de interpretar seu repertório sem retirar as nuances dele. O baiano soa agora porquê o acúmulo de todas as suas experiências —da voz hoje mais econômica à maestria desenvolvida no violão—, e não uma sombra delas.
Ele foi escoltado por mais de uma dezena de músicos, num espetáculo de arranjos renovados e que se dedicou a narrar uma história. Depois das três performances iniciais, ele seguiu sua trajetória numa risca cronológica.
Começou com duas músicas que deram conta dos pilares de sua curso —o baião de Luiz Gonzaga, o samba baiano de Dorival Caymmi e a bossa novidade de João Gilberto. A primeira foi “Eu só Quero um Xodó”, constituição de Dominguinhos que Gil popularizou nos anos 1980, a segunda, “Eu Vim da Bahia”, de Caymmi, mas muito conhecida na voz de João.
Esta última serviu de introdução ao próximo passo da narrativa —Gil era logo o baiano que chegava no Sudeste. Entre Rio de Janeiro e São Paulo, ele protagonizou os anos de enfrentamento estético e político da tropicália, representados por “Procissão” e “Domingo no Parque”, ambas da segunda metade da dezena de 1960.
A repressão dos anos de chumbo da ditadura militar chegou através de Chico Buarque. Em testemunho em vídeo, ele contou porquê compôs ao lado de Gil a música “Cálice”, em suas palavras, “uma música que falava de increpação e foi censurada”. Ele falava sobre o AI-5 e porquê “os microfones [dele e de Gil] foram silenciados” quando os gritos de “sem anistia” inflamaram uma secção da plateia.
A partir dali, o fragor era tanto que era quase impossível entender o testemunho de Chico, anterior a uma performance carregada de força de “Cálice”. O frisson só aumentou com o telão trazendo imagens de vítimas da ditadura, casos do deputado Rubens Paiva —cuja história é retratada no filme “Ainda Estou Cá”, primeiro longa brasiliano a vencer um Oscar— e do jornalista Vladimir Herzog, ambos mortos pelo regime.
Caetano Veloso e, no termo, o próprio Gil, presos e expulsos do país pelos militares, também surgiram nas imagens. Ao termo de “Cálice”, até quem estava sentado nas cadeiras se levantou para aplaudir a performance, em gritos de saudação que preencheram o estádio.
“Back in Bahia” contemplou o exílio e o retorno ao Brasil. A ida surgiu na música, o rock que marcou aquela temporada da obra de Gil, muito influenciado por Beatles e Rolling Stones em Londres, e a volta na letra, que retrata a saudade e o reencontro com o mar da Bahia sem rejeitar os anos na Europa.
Gil foi apresentando os músicos ao longo da noite. Mestrinho teve destaque no acordeon, tendo assinado também secção dos arranjos do show. Diversos familiares também acompanharam o tropicalista no palco —caso de João, neto, que fez o solo de guitarra em “Back in Bahia”, além de Muito, José e Nara, filhos, e a nora Mariá.
A narrativa passou pela reconstrução da curso no Brasil. “Refazenda” trouxe o reencontro com o sertão baiano de sua puerícia em Ituaçu, e “Refavela”, o período de maior interesse pela música afro-diaspórica. Gil falou sobre porquê sua viagem a Lagos, na Nigéria, nos anos 1970, influenciou esse período.
Antes de fechar a trilogia “Re” com uma performance animada de “Realce”, ele se dedicou ao reggae. Gil foi um dos grandes embaixadores do ritmo jamaicano no Brasil, da memorável turnê com Jimmy Cliff à tradução de sucessos de Bob Marley —caso de “Não Chores Mais”, originalmente “No Woman, No Cry”, com uma introdução ao pandeiro e cantada em coros pelos baianos.
Alguns dos maiores sucessos de Gil são no ritmo jamaicano, que marcaram um dos momentos mais celebrados da apresentação, ainda com “Vamos Fugir”, “A Novidade” e “Extra”. Esta última, uma pérola do reggae brasiliano, soou apoteótica ecoando pelos paredões de arquibancadas da Manancial Novidade.
No palco, fica nítido porquê Gil sempre usou o filtro tropicalista que forjou para haurir diversas expressões musicais, de dentro e de fora de seu país. Zero que ele faz é mera reprodução, mas uma tradução pessoal, levando em conta a cultura que lhe formou, do que suas antenas captaram ao longo dos anos.
Ele cantou “Punk da Periferia”, sua visão do estilo que despontava no exterior e nas periferias de São Paulo na viradela dos anos 1980. Mostrou também “Realce”, em que deglute a disco music, numa sequência de canções que lançou naquele período, incluindo também “A Gente Precisa ver o Luar”.
O violão de Gil, uma instituição da música pátrio, deu as caras na fatia mais emotiva do show. Ele cantou uma versão sublime de “Se eu Quiser Falar com Deus” escoltado de cordas e um solo de sopro, além de “Drão”, “Estrela” e “Esotérico”, levando às lágrimas quem ainda não tinha pranteado.
Antes de “Drão”, Gil dedicou o show à sua filha, Preta Gil, que trata um cancro. Ela assistiu ao pai na Manancial Novidade, em seguida ter recebido subida médica horas antes da apresentação.
A reta final foi de pura celebração, com a plateia toda de pé e dançando. Teve “Expresso 2222” e “Caminhar com Fé”, num momento em que a força emanada pelo público era palpável.
Em “Emoriô”, Russo Passapusso, do BaianaSystem, engrossou o coro, seguido por encontro de ministros da Cultura de governos do presidente Lula, do PT. Gil, ex-ministro, recebeu Margareth Menezes, atual ocupante do posto, em “Toda Rapariga Baiana”, cantada para um estádio em êxtase —finalmente de contas, além de tudo, era a Bahia.
O fecho veio depois de quase 2h30 de show. Contou com “Esperando na Janela”, com os casais na plateia devidamente dançando forró, e “Aquele Amplexo”, a despedida na despedida, em que Gil sambou, tirou vaga, puxou um coro de “Na Baixa do Sapateiro”, de Caymmi, e saiu de cena agradecendo porquê um bandleader de outras eras.
Em seu show de despedida, Gil é mais que um contador de histórias —ele é a própria história encarnada, capaz de juntar no palco as várias pontas de uma obra que brilha viva para além dos livros de história. Ajudou a estreia ser em Salvador, cidade pulsante que se reconhece em seus versos. Uma vez que na trajetória do tropicalista, a Bahia deu à turnê régua e compasso.
Datas da turnê ‘Tempo Rei’
- 29 e 30 de março e 5 e 6 de abril de 2025 – Rio de Janeiro – Farmasi Estádio
- 11, 12, 25 e 26 de abril de 2025 – São Paulo – Allianz Parque
- 31 de maio e 1º de junho – Rio de Janeiro – Marina da Glória
- 7 de junho de 2025 – Brasília – Estádio BRB
- 14 de junho de 2025 – Belo Horizonte – Estádio MRV
- 5 de julho de 2025 – Curitiba – Ligga Estádio
- 9 de agosto de 2025 – Belém – Estádio Mangueirão
- 6 de setembro – Porto Satisfeito – Estádio Orla Rio
- 15 de novembro de 2025 – Fortaleza – Núcleo de Formação Olímpica
- 22 de novembro de 2025 – Recife – Classic Hall
O jornalista viajou a invitação da produtora da turnê