Num vídeo que circula nas redes sociais, Fernanda Torres fala sobre o reconhecimento internacional de “Ainda Estou Cá” e de seu próprio trabalho. O trecho é retirado de uma entrevista concedida ao jornalista Rodrigo Ortega, do UOL, na qual ela comenta a riqueza da cultura do Brasil e a nossa singularidade uma vez que espécie de “ilhéu continental” separada do mundo pelo linguagem.
Paralelamente a essa formato, ou melhor, por culpa dela, nas palavras da atriz “a gente consome a nossa própria cultura, a gente tem totalidade interesse por nós mesmos, porque nós somos uma potência de 200 milhões de pessoas, nós somos um país multíplice, temos as próprias questões”.
Nessa relação intrincada com seu país e com o mundo, os brasileiros letrados conhecem muito mais a cultura europeia ou americana do que os europeus e os americanos conhecem a brasileira. Essa assimetria nos dá uma certa segurança sobre a relevância de nomes ignorados internacionalmente, uma vez que foi o caso, até pouco tempo, de Machado de Assis e Clarice Lispector, ou uma vez que continua sendo com Nelson Rodrigues.
“Porquê é que posso falar com alguém que não sabe quem é Nelson Rodrigues, que não sabe quem é Luminária?”, pergunta Torres. Se por um lado existe o multíplice de vira-lata, por outro lado o Brasil “tem pena de o mundo não saber o que a gente sabe”.
As observações me lembraram prontamente de uma entrevista que fiz em 1990, em Milão, com o professor e noticiarista Umberto Repercussão. Foi um encontro peculiar, que contou com a participação dos poetas e irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos. Repercussão, um teórico da semiologia, disse a dada fundura da conversa que o Brasil o espantara por ele ter divulgado cá estudiosos sérios de Charles Sanders Peirce, filósofo, matemático e linguista americano.
“Me parecia que só os alemães se interessavam por Peirce”, disse o responsável de “Obra Ensejo” e “O Nome da Rosa”, que nos visitou pela primeira vez em 1966.
Aproveitando a deixa, observei que o Brasil tinha esse tipo de coisa, essas singularidades, embora fosse um país periférico, que se situava fora do meio do sistema mundial.
“Mas o Brasil é um meio por sua própria conta”, retrucou ele. “Esse é o drama do Brasil: não é o de ser unicamente um país fora do meio, porque há muitos nessa situação. Mas o de ser um país que tem um meio por sua própria conta.”
As coincidências entre as palavras de Torres e Umberto Repercussão são evidentes, o que nos leva ao indumento de que as questões sobre identidade vernáculo problematizadas pela atriz vêm de longa data e atravessaram nosso debate do século 20, tempo de “explicadores do Brasil” e de experiências de construção de um país que só se realizou integralmente uma vez que projeto civilizatório no projecto simbólico da cultura.
Essa é uma questão já levantada por muitos, e de maneira enfática por Caetano Veloso, vate voluntarista das possibilidades dessa ilhéu continental lusófona. Conhece-se sua visão de que a música popular teria sido um lugar privilegiado dessa elaboração —e a bossa novidade o seu auge.
No vídeo, Torres se refere ao sentimento de “um orgulho vernáculo bacana”, que mais uma vez se manifesta no projecto da cultura —terreno do qual o futebol já fez secção de maneira mais criativa. Não por eventualidade, foram muitas as comparações feitas entre a torcida pelo Mundo de Ouro e o clima que vemos na Despensa do Mundo.
Tudo isso pode toar um tanto macróbio, mas Torres tem nascimento, cultura, obra relevante (inclusive literária) e idade para essa conversa. Ocorre que passamos por uma fratura que alterou essa perspectiva. Ou por múltiplas fraturas, não unicamente nacionais, que nos confrontam com a crise das promessas da democracia liberal e das utopias socialistas, a desigualdade, a tribalização do oração progressista e a emergência do populismo de extrema direita.
A imagem da ilhéu continental continua a fazer sentido, embora sempre de alguma forma tenhamos marcado presença no mundo. A premiação de Torres faz dela um gigante da cultura deste Brasil que ela tanto governanta, e é um sinal de que talvez possamos grudar alguns de nossos cacos.
Num paralelismo óbvio com o título do filme de Walter Salles (e do livro de Marcelo Rubens Paiva), o sucesso parece evidência de que aquele Brasil sonhado por muitos ainda está cá. Assim uma vez que os velhos inimigos, os obscurantistas do fascismo cultural e político redivivo, que preferem o autoritarismo e um perceptível tipo de isolamento, oriente sim sufocante.