Grande Sertão Exalta Lado Barroco E Espírito Etnográfico 07/06/2024

Grande Sertão exalta lado barroco e espírito etnográfico – 07/06/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

A terreno seca rachada envolta por um grande muro de concreto, revelada no primeiro projecto de “Grande Sertão”, é um alerta: a degradação que o filme vai mostrar não é unicamente do solo, é da espírito humana.

Dirigida por Guel Arraes e com roteiro assinado em parceria com Jorge Furtado, a obra analisa a desertificação das relações interpessoais. “Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o varão tem que ter a dura nuca e a mão quadrada. É onde manda quem é poderoso com as astúcias”. O reverência à prosódia de Guimarães Rosa é evidente e o texto literário não é mero adorno estético, é exposição político. Mais poderoso do que o poder do lugar é o “pensamento da gente”.

E qual é esse pensamento? Ou melhor, quais são esses pensamentos? No plural, uma vez que o elenco afinadíssimo. Do paulistano Caio Blat à carioca com coração pernambucano Luisa Arraes. Do baiano Luis Miranda à brasiliense Mariana Nunes. Pluralidade de sotaques e talentos. O sertão do filme, assim uma vez que no livro, é de paixão e ódio. Não uma vez que uma situação polarizada, mas essencialmente dialética. O que sai desse caldo? Quais outros sentimentos brotam?

Hermógenes, personagem de Eduardo Sterblitch, é o caramulhão, o tinhoso, o enjeitado, o cabrão sem chifre, mas com verrugas. É o rancor travestido de ódio. Fundamental para entendermos esse Brasil em 2024, com pessoas que ainda fazem escolhas essenciais na vida, inclusive votar, a partir de ressentimentos e frustrações. Hermógenes age a partir do rancor que nutre por Joca Ramiro, interpretado por Rodrigo Lombardi. Apesar de estarem do mesmo lado da guerra social retratada no filme, o ressentimento os afasta.

Joca, por sua vez, é o líder dos revoltosos contra o sistema. Diferentemente do verruguento opositor, é o afeto que opera dentro dele. Afeto por Diadorim, vivido com intensidade física por Luisa Arraes. Ela está irreconhecível, um distanciamento contraditório de Blandina, personagem dela na romance “No Rancho Fundo”.

Uma das grandes sacadas desse “Grande Sertão” urbano e próximo do real é o indumento do roteiro não explorar romanticamente a relação entre Diadorim e Riobaldo. Evidente que eles se amam, e evidente que isso os incomoda. Porquê dois homens podem se amar? Eles se incomodam só de pensar que um ósculo pode sobrevir. A tensão sexual entre ambos importa mais do que o romance platônico idealizado. Tanto que quando Luellem de Castro entra em cena, arrebatadora uma vez que Nhorinhá, entendemos a chave dialética da obra. Não há rancor desse lado da história! O que existe é afeto, é escuta, é prazer.

Nhorinhá age uma vez que catalizadora dos sentimentos de Riobaldo e Diadorim. Eu luto pra quê? Eu vivo pra quê? Uma obra que nos faz refletir sobre nosso papel no mundo, na vida em sociedade. O que vi no cinema me fez pensar sobre qual tipo de pai quero ser para Enrico, meu rebento. Um pai que não se esconde covardemente na virtualidade das redes anti-sociais, mas se apresenta diante da complicação do mundo real. Assim uma vez que o professor Riobaldo decide, no filme, despovoar a sala de lição para lutar em outra trincheira.

O filme rasga e remenda os gêneros cinematográficos. “Grande Sertão” é para ver quieto na sala escura do cinema, “sem preparos de avisar”, uma vez que diria Guimarães Rosa. “O senhor sabe o que é silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Pois muito, por que há de vivermos no meio desse estrondo todo? “A gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a teoria e o sentir da gente”. Esse não deveria ser nosso propósito em vida? Ou uma vez que canta Emicida: “Mano, rancor é igual um tumor, envenena a raiz”.

Quando Riobaldo quebra a quarta parede, na sequência final do filme, para proferir, olhando nos olhos dos espectadores, que “o diabo não existe, ele vige dentro do varão”, voltamos à dialética básica do filme. Do paixão e do ódio, do afeto e do rancor, de Deus e do diabo, do real e da fabulação. É provável mesmo encontrar um fio de verdade no meio desse palavrório? Pouca gente sabe, mas Guel Arraes cursou por dois anos Antropologia na Universidade de Paris entre 1972 e 1974, quando viveu exilado do Brasil com a família por culpa da ditadura militar.

Zero mal para um cineasta que, com “Grande Sertão”, pretende investigar o comportamento do ser humano da maneira mais ampla provável. Guel também fez segmento do Comitê do Filme Etnográfico de Jean Rouch, considerado o pai do cinema verdade, durante sete anos. Esse comitê de Rouch atuava uma vez que se fosse uma pequena produtora de filmes documentários. Não era uma escola de cinema, mas foi uma grande escola para Guel Arraes. Com quase 50 anos de audiovisual, ele termina a obra mais ousada da curso com uma reflexão puramente etnográfica: “O diabo não existe real, o que existe é o varão humano”.

Folha

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